"Maria, me dá um cordão de ouro???"












A Nega do Fama é um tributo. Uma ode às muitas mulheres que me habitam e a quem quis homenagear num trabalho solo performático e autoral.

Maria- nome que foi esquecido há muito pelo "nega", intimo e banalizado pela vizinhança que a vê como doente mental vagante- negra, bonita, ingênua, tão sã e insana quanto eu e vc, existe. Mora num lugarejo distante de tudo que a impede de ter 'logo' o cordão de ouro que deseja adquirir, aquele que não cansa de pedir repetidamente a quem com ela tiver o privilégio de cruzar a vida, a sorte e os sentidos.

A conheci num domingo "qualquer", num desses dias de nada a fazer. A graça da moça de riso largo e"barato" na boca encarnada de viço, no corpo torneado ajustado ainda mais numa saia curta ao extremo, deixando a mostra uma pele tingida de ancestralidade e sol, sol a pino nas várias andanças que faz sem rumo durante todo dia, as vezes em noites inteiras, de uma casa a outra, do bar à escola, da igrejinha ao centro comunitário sem nunca parecer cansar.

Vaidosa, graça no tempo sem tempo com sua pequena toalha rosa-bebê com que brinca e enxuga a face quando cora de vergonha, dizendo que tá com vontade de fazer "aquelas coisas, sabe Maria?", quando fala do "Tá ligado", o padrasto que consome com drogas os tostões mensais que recebe da "previdência social", aquele orgão que ignora sua condição, seu estado e natureza carente de versos, versos de amor.

A nega vê a vida em quadros, pequenos quadros coloridos como numa TV móvel. O cordão de ouro a levou a cantar coisas um certo dia, noite a dentro, na festa de aparelhagem "porque catar lata, dá dinheiro, né mana?".

Maria carrega coisas. Cata felicidade entre os suspiros dos olhos que querem engolir o mundo e as gentes que a encantam, mesmo as que a rejeitam ou fingem ignorá-la.

Seria demais reduzí-la a uma personagem... a nega é uma história escondida e hoje visitada pelas texturas da arte, a arte da performance.

A cada "saìda" que faz como num rito de roteiro semi-estruturado, sem forma e sem fôrma, recombina movimentos e emoções, ações performativas de um corpo que recolhe material novo, a cada novo evento uma outra demão sobre ela.

Devoro a rua em sua companhia. Degustamos, eu e ela, as pessoas, os lugares, as ocasiões como quem sorve um sorvete refrescante, de fruta da terra, numa tarde de domingo escaldante na Praça da República que, de repente, é o próprio FAMA, a casa a beira do igarapé da família que quase a adotou com carinhos regulares e comida quente diária, o campo de futebol "onde ficam os meninos bonitos!" recanto onde reina "livre e esguia, filha de quanta rebeldia a sagrou!"

Com uma de suas máximas, devolve a vida pra mim em provocação: "Maria, né que chamar preto de preto dá cadeia?"[...]


Dedico essa postagem a todos os amigos artistas "performeiros" da cidade de Belém/PA.


(Performance NEGA DO FAMA, pesquisa artística concebida no âmbito do Curso Estudos Contemporâneos do Corpo, Escola de Teatro e Dança/ ICA/ UFPA, Turma 2010)

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