CORPO MONSTRO " a medida em que não é!"- ao Rodrigo Braga

"um corpo-mente em liberdade afrontando as necessidades e os obstáculos predispostos, submetendo-se a uma disciplina que se transforma em descobrimento." (Eugênio Barba)

Bom, de uma coisa estou bem certa: em se tatando de palavra minha relação com ela não é, em nada, autônoma.

Veja o caso desse texto: remoeu três anos aproximadamente e revirou minha cabeça e minha insônia na última semana por três dias consecutivos. Porque quando a palavra quer você, ela te caça, te encontra, te encurrala, te fita profundamente e te aciona , daí não tem mais como fugir: é imprescindível ceder! Sou sua escriba e nada além disso. Quem escreve sabe o que faz, sabe bem do que estou dizendo.

Em 2010 ao sair da estréia do espetáculo CORPO SANTO do meu mais que querido (e lindo!rr) ator Rodrigo Braga pela Cia. Madalenas (é um dado público que eu sou apreciadora de seu trabalho), a questão veio a tona por ele mesmo ao término da apresentação:

"Então? O que vc achou". (riso leve de lábios fechados bem típico de quem quer ouvir a gente).

"Prefiro escrever sobre isso. Aguarda, tá? - disse a ele- com riso de boca bem aberta característico de quem é expansiva e falastrona como eu.

Poxa, acho que nunca algo tramitou tanto tempo dentro de mim.

Pronto, não tem mais jeito, finalmente o que tenho a dizer a ele sobre ELE mesmo. Não é um registro forçado, não, em hipótese alguma. A palavra me concede o desejo de grafá-la. É um desejo de dividir, de partir-se ao meio, devolvendo a ele algumas singelas impressões de espectatriz.

Conheci o Rodrigo em julho de 2009 por ocasião da montagem do Paixão Fosca, a qual era protagonizada por ele, por mim e pela Paula. Juntos, formávamos um triãngulo deveras atípico para uma trama contemporânea, não fosse o alto teor de universalidade que a narrativa de Tarchette adaptada pelo Gual Dídimo, concedia à frescura da obra nesse tempo e nesse espaço em que os atores a trouxeram aos palcos como encenação da vida-movimento que não pára nem contenta-se em si mesma. texto que vira cena, cena que vaza a vida. E foi nesse fluxo de ensaios que conheci o ator de CORPO MOÇO e o ser humano de quem falo apesar do pouco tempo de convívio que tivemos, pois infelizmente- melhor diria felizmente- ele precisou ficar conosco apenas na 1ª temporada. Ninguém perdeu, ganhou a pesquisa teatral, o teatro paraense.

No mesmo período viajamos juntos numa comitiva de alunos-artistas da UFPA que foi apresentar trabalhos acadêmicos e artísticos no XIII Encontro Nacional de Arte na UFBA, em Salvador/ BA, no qual ambos tínhamos pesquisas a comunicar: eu com minhas "poetices" pelo CLAMA, ele com um fragmento de Corpo Santo, objeto de sua afeição e trabalho obstinado naquele momento e desde o princípio. Combinamos que levaríamos os textos, do Fosca e de "Jorge" para quem sabe passarmos entre uma atividade e outra. O tempo para montagem de ambos não nos era tão favorável, precisávamos correr, ele bem mais que eu porque entre os dois trabalhos que o "dividiam" ao meio, havia uma carreira acadêmica para dar conta, e o CORPO MÁQUINA cotidiano não podia parar. Ele naquele momento era todo desdobramento e entrega.

O jovem ator não deixou de levar na bagagem o imprescindível: os tijolos com os quais mantinha extremo zelo e proximidade, a lança, a calça branca, as guiaa, as velas, o riso, o violão com que nos alegrava durante a viagem, a vontade de dizer do seu trabalho e do que isso significava para ele, e o texto (que algumas vezes tive a chance de passar com ele ouvindo a pronúncia inicial de algo que estava se entranhando nele de tal forma, que era só uma questão tempo para que se fundissem numa mesma unidade fônica, o CORPO PALAVRA.

Rodrigo é desses atores cuidadosos que se permite ser seu próprio interlocutor a medida em que faz e volta pra ver o que faz, refaz e vê de novo, quer ouvir pessoas, apresenta várias vezes, torna a olhar, compartilha, volta a ouvir e a ver de outro ândulo, pergunta (se) e reflete num crescente, em aspiral, àquilo que se propôs de forma comprometida, não em busca da virtuose mais do algo que estar por detrás daquilo que carrega consigo e que o move a avançar: a pesquisa, busca a neutralizada de forma obstinada. E como pesquisador exigente que é, ele tem se superado a medida em que percebe que ela é initerrupta e que o contato com outros espaçotempos de espectações lhe capacida avançar em sua busca e a enxergar e ressignificar esse fazer do qual alimenta sua arte.

O vi em Salvador/ BA em setembro de 2009, num fragmento breve, leve e nem por isso raso, apresentando-se bem longe de casa, do conforto dos olhos de quem o conhece e dos olhares e das falas que o legitimam como importante profissional que é. Fui sua platéia no espetáculo de estréia em abril de 2010 quando o CORPO CENA gritou feroz ferindo a própria miscigenação que teima, ainda, nos dispor em classes distintas: negros e as coisas de negro e os brancos com suas especificidades.

Acontece que em se tratando de teatro, no que se refere à arte do ator, temos o hábito de sangrar a dita "civilidade" que nos dividiu historicamente nos rotulou por séculos, porque somos exatamente o que somos e aquilo em que depositamos nossas crenças, porque é lá que nossa fidelidade e nossa força motriz se manifestam inteiras e nos arrastam para aquilo que ao olhos de muitos seja difícil encontrar . Em seu solo Rodrigo deixa isso bem evidente. Não àtoa São Jorge guerreiro tatua o corpo do ator esbanjando vivacidade o que muito antes da encenação em si, já desvelava sua devoção que marca uma negritude peculiar, dele.

O CORPO CRENÇA é um corpo que ergueu-se nesses anos de trabalho em que o Rodrigo se revela místico, lúdico, cantante e encantador, brincalhão e despojado, talvez por isso tenha ido tão longe em busca de validar ou refutar suas impressões (porque a pesquisa também se propõe a isso algumas vezes!) tudo que veio se somando dia-a-dia ao trabalho dele e daqueles que dividem com ele a tessitura de CORPO SANTO. Porque engana-se, redondamente, quem pensa que ele, sozinho, tenha conseguido embrenhar-se por terras densas e sido tão feliz nesse retorno-resultado.

Um solo de muitos solos técnicos e vivenciais orquestram essa sonata que foi criada para soar, perto, longe, alcançando nossa ancestralidade mestiça, mistura, tão bem sacralizada em nossos ritos religiosos e ainda tão pouco vislumbradas em sua majestade africana, aqui afro-brasileira, desde o "fatídico" de nossa errônea e infrutífera aculturação. Outras vozes e mapas experiencias e territoriais cartografam essa opção cênica atribuindo-lhe força e longevidade.

O espetáculo traz a tona, em Jorge, os homens e mulheres brasileiras entre os quandrantes do "país tropical" subjugados pelo dragão que os persegue há mais de 500 anos mas que não resistiu a bravesa do nosso canto, da nossa fé, dos nossos contos que ecoaram e continuam ecoando nas pretensas senzalas diárias das fábricas, das "casas de família", das empresas e dos escritórios que guardam e alimentam a manifestação diária dele, a mostrar-nos a limitação, a nossa por vezes tímida reação diante das adversidades da vida, do peso de origem, sem nos negar o sonho. um dragão perverso, astuto e zombador mas que vê-se diante da espada de Jorge a cada novo amanhecer, porque ele não é todo escudo, ele também é, sobretudo, lança, coragem. Por que equivoca-se também quem pensa que "Jorge" é só constatação e medo, Jorge guarda em si enfrentamento, é audácia e superação.

Rodrigo Braga explora de forma minunciosa o universo no qual desliza multifacetando-se de forma distinta cristalizando em seu CORPO SINCRÉTICO, vértebra por vértebra, suor escorrendo em tempo real, movimentos sinuosos em riste, comportamentos recombinados trazidos para a cena aos pedaços com inteireza de ritmo e presença incondicional em cada um deles. Vozes metaforseadas duma fisicalidade que se deixou tecer ultrapassando o que o corpo esguiu, alto e de pele clara, aparentemente leve demais dava a conhecer somente como matéria cotidiana, refratando-se ao público, vez e outra, como um guerreiro forte, viril, poderoso e destemido porque o olho do ator marca na tela da espectação de quem o acompanha em cena o lugar desse trajeto.

Um CORPO NARRATIVA se encarrega dos contornos performáticos que a possibilidade orgânica trata de organizar alterando formas, tamanhos, nuances, entre grande e pequeno, plano alto, médio e baixo, sem que nada fique pelo caminho ou se apequene, pois a respiração e a precisão do corpo em repouso ou em movimento dão conta do resto. É assim que o espetáculo desperta São Jorge, o menino- homem Jorge, o imbatível Ogum Beira Mar.

Foi dessa forma que um CORPO MONSTRO, que outrora foi apenas moço e disciplinado, cresceu, multiplicou-se e hoje se apresenta inteiriço e renovado, sem a arrogância de um dizer definitivo, mas com singela crueza e simplicidade tal que nos permite adentrar a mata, ouvir os pássaros, o marulhar da maré, molhar os pés nas ondas do mar, capoeirar angola, gingar, cantar, brincar de ser quem se é, e crer ainda mais naquilo que nos faz ser quem somos. Um corpo bem mais largo e vistoso que o dragão que o enfrenta e que deseja possuí-lo.

Flores pra te ornar a vida, colar pra te enfeitar, água pra lavar o chão por onde passares, as energias vitais do universo pra te acompanharem, velas pra iluminar a estrada diante de ti e lanças firmes pra o teu corpo proteger, e o amor incondicional, teu maior escudo pra que sejas capaz de enfrentar teus opositores e encarares de pé todos os dragões que encontrares pelo caminho desse lindo e difícil fazer que escolhestes viver. Pra que prossigas valente, doce e exigente contigo mesmo em cada novo dia!

É apenas isso que te desejo, meu querido "Rodrigo-Jorge", brasileiro, Braga, ator-criador e compositor amoroso deste solo, hoje, mais nosso do que seu.

SALVE SÃO JORGE!

SARAVÁ POVO DE UMBANDA!

AXÉ OGUM neste ano das divindades das águas!

Evoé Cia Madalenas!

Parabéns meu querido amigo! Perdoe a demora...

....

Rosilene Cordeiro (Atriz e tua admiradora)

(compartilhando com amigos que se interessam pelo assunto)

Acesse o link http://youtu.be/rZ_ppwNBELw

Matéria Espetáculo "Corpo Santo" no Vidigal. Crédito da imagem Alan Soares, disponível em http://lulacerda.ig.com.br/38696/



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