Revista do Cretino 2015 - resenha participante do Vol. 01 Nº 02 Espetáculo "Assim seja... O divino High tech", do Coletivo BAI, Belém Pará
Montagem Teatral: BAI - Bando de Atores Independentes
Elenco: Mauricio Franco e Sandra Perlin
Dramaturgia: Maurício Franco e Sandra Perlin
Direção: Nando Lima
Apoio: Paulí Banhos
....
Sintoni[z]a
sensorial em Assim Seja... O Divino High Tech
– e a sua redeoplastia silenciosa do som.
Rosilene Cordeiro
(Atriz-performeira amazonida, professor de teatro,
realizadora de cena entre a urb, rios e campos da grande florestas)
Atriz-performeira amazônida, realizadora de cena entre a urb e os rios
da grande floresta.
Icoaraci-Belém/PA. Julho 2015
#terreiroeomundo
Ao
que me parecia, de princípio, era que se referia apenas ao convite para uma
vivencia sensorial ao estilo experimentação, como é da alçada investigativa do renomado
diretor do espetáculo, Nando Lima. Experimentação,
talvez, sobre a mesma sensação que busco recuperar aqui, ou não, diante da
oportunidade de re-ouvir a composição em áudio proposta como trilha sonora do
espetáculo[1],
agora na condição de escriba, ao escrever esses rabiscos de memória falha e
pontual. Sonoridade sem a qual, ao meu ver, essa empreitada perde todo seu viço
memorial.
Sinergia
labiríntica em ondas sonoras girantes como círculos em aspiral decrescente para
dentro, para o fundo do mínimo, entre rumores contro_versos de uma saliência
sonora inquietante. Talvez (reforço, talvez, eu diria e você entenderá mais
adiante porque tanto talvez!) em busca de uma camada de lógica que seja, isso como
um certo alívio pós-espetáculo; desses que inconsciente se faz ao término das
peças teatrais, quando findos a leitura da ficha técnica e dos agradecimentos
pessoais e institucionais como é de praxe.
De
outro modo e não longe disso, observo a ab_surda exigência milimétrica
consciente, essa da escrita padrão,
patronal do pensamento humano!
Converso
comigo: “Ora, não sabes que tudo que é ouvido não pode ser des/transcrito em
letras? E que toda escrita se presta ao assentamento dela mesma, depondo
infalivelmente em seu próprio favor enquanto linguagem? E ao mesmo em que se
registra, nesse ato supremo, se priva, se nega outra possibilidade dentro desse
escrito fechado sobre ela mesma, ao menos que se abra em outras linhas essa
adesão consentida?”
No
entanto, esse é um relato de ‘ao contrário’, falível logo na entrada, questionável
em sua validade, acusador de toda propriedade absoluta disso que chamo ‘minhas
impressões’. Vai de encontro a tudo que se titule uno, definidor, verdadeiro,
por assim dizer. É preciso que eu declare essa tentativa de corte com as
convenções canônicas do verbo escrito, para inviabilizar qualquer julgamento
precipitado futuro por parte do meu leitor acerca do que eu escrevo. Porque
escrever sobre sensações é demasiado grande para mim! Mas aqui me presto a
isso, logo, me arrisco.
Era
28 de junho, 20h20’, em Belém do Pará, num espaço relativamente novo a mim Da Tribu, seu nome, localizado no centro
da noite na cidade, véspera do dia de Pedro, o São Pedro de junho, embadeirador
de mastros, maestro de bandeirinhas coloridas no céu vazado, o que também se
assistia no espaço anterior da sala que se emprestou ao espetáculo que tinha no
elenco um duo de atores, já veteranos da cena artístico-teatral da cidade de
Belém: Maurício Franco e Sandra Perlin.
Estive
no último dia de audiência da segunda temporada do espetáculo teatral Assim
Seja... O Divino HighTech (ou o inverso, isso em
nada alterando-o, por certo! O nome é bastante inquisidor) um espetáculo sonoro,
de muitas palavras mudas e um inaudível óbvio inebriante de falas interiores,
sucedidos por óbitos de cenas aparentemente caçadoras umas das outras.
A experiência me conduziu por uma trilha gestual silencio
- ruidosa sem fim. Dois atores em cena, dois amigos e cúmplices de longa jornada
artística teatral (quiçá ancestre, talvez! Porque é claro para quem os conhece,
o jogo previsível e brilhantemente
combinatório desses que já dividiram muitos palcos e inúmeras temporadas
ao lado um do outro). Ante seu público, naquela noite ralo, porém comprometido,
acomodado à boca de cena num espaço favoravelmente íntimo e intimamente violado
pela assistência visual instaurado àquela hora de angústia e poesia.
Uma ladainha a São João? É isso que ouço ao longe?
Rastros, sonoplastia sinistra a nos raptar para o fundo do ouvido... e quanto
mais entramos no ouvido, tão mais o corpo se declina para a frente em busca de
uma espécie de pão que alimente nossa fome curiosa pelo ‘que se diz’. Talvez resolvido
por um simples barulho reconhecível de pacote de biscoitos... talvez!
Em alguns momentos sinto que a casa nos lê em cena, dentro
de dentro, como livros revirados, como expectantes arredios tragados pra dentro
da ‘casa’ e lá esmiuçados em partículas cada vez menores, sendo unicamente
nutridos pela bolsa (objeto cenográfico) que não cessa em oferecimentos como
preces vindas da alma. Visualmente, como cães famintos pelos olhos nos encontramos à beira exata do osso, do
único e ampliado osso que se oferece a nós, a cena: de um que serve, de uma que
é servida e de todos sedentos esperando o ‘próximo prato’.
E é sobre visualidades, audiências, sensações e
interações reais e oníricas que se dão esses bailados vibrantes em ondas
tecnomagnéticas sugestivas de fugas de dois atu_antes -ou três, ou muitos- a
dividir os uivos de colina da hora ausente.
E onde estamos? Que lugar é esse? Quem são esses que
dividem comigo a sede, a fome, o grito, o sussurro, a montanha e o fosso?
“Nenhuma voz em meu auxílio!” O som não me responde, só traz novas perguntas e
alguns roucos gemidos.
Um trabalho sonoro coletivo à medida que reinventa a
palavra nas coisas, em que cria hipertextos narradores de um ‘onde’ não
localizado, de um tempo preciso na imprecisão das inúmeras divagações [in]possíveis
e [in]ventadas para nos agarrar em algo palpável, talvez, que nos salve do
abismo de nossas certezas...talvez!
Mas, onde estavam as opções que o release assinara
que eu teria? E por ventura, não é um release, já, em si mesmo, um
encaminhamento, ‘a pedra no meio do caminho’, ‘um ter por onde ver’ o
espetáculo? O mínimo imediato que guia a lupa do ‘comecemos por aqui’?
Só que eu não me quis ver! Eu recusei a lupa.
Muito provavelmente, nesse momento, o instrumento
mais apropriado fosse o fone de ouvido! E era. Eu estava ali para ler o
silencio da vista e interpretar os sons distantes e confusos da minha
real_idade vencida pelo relógio cênico parado e girante em tempo presencial.
“Está doendo demais, a falta que você faz!”... (ao
fundo, de fundo turvo, desajeitado e torto, confundindo-se propositalmente com
outros ruídos e vozes) nesse longe-perto-dentro-fundo ouvia-me, a mim mesma,
gritando em coro com o Roberto Carlos. Que doido! “Sua estupidez, não deixa ver
que eu te amo! Meu bem, meu bem...”
Não, senhoras e senhoras, eu não estava
enlouquecendo! Sentia-me de volta ao que parecia um lugar que vou chamar de casa,
ao quarto, à sala, visitando a cozinha e alojando-me, confortavelmente, no
depósito das minhas frustrações e aspirações guardadas. Uma casa, uma nave, um
porão, o céu e o inferno que eu nunca vira, mas que me pertencia por completo.
E eu estava ali, em cena, desmanchando-me em cada gesto dos atores, em cada
respiração de cada espectador.
Poemácias em coro como cachoeira ou erva daninha se
alinhando no vazio, no oco em que vez o
outra me surpreendia suspensa e imóvel. E as leituras advindas propunham interpenetrar
nossos abismos existenciais, isso para quem o quisesse fazê-lo. Eis-me,
novamente, frente ao estado de platéia! No alto do pico afunilado para o alto de minhas
prementes indagações sem eco, rasgando o infernal divinizado de mais e mais especulações
sem tréguas e o vazio. E a iminente queda logo mais adiante. E as vozes em
ruídos e música se avolumavam: Todo o tempo é de poesia.
Desde a arrumação do caos à confusão da harmonia, sussurrava- me o poeta Antonio Gedeão.
A dramaturgia versa sobre/entre amores, fugas, dissabores,
organicidade, rejeições, fluidos, reclusão, ranhuras, sombra e apelos
sinestésicos emparedando-nos numa câmera em que o ar, imperceptível e
totalmente sentido, virou aroma, tinha cor, pôde ser degustado na saliva
escorregadia no rosto do ator.
Clássico e contemporâneo o tempo espetacular, nesse
espetáculo, vai se esgarçando com o a sonoplastia proposta, se abrindo em gomos,
potencialmente comestíveis e recusáveis, sob o esgarçamento de uma narrativa
quente, adocicada pelo texto não oralizado. Experimentalismo e técnica,
maestria dual sob a batuta barulhenta de seu maestro conduzindo-os a uma
liberdade onírica selam esta poética do tempo homilateral diante dele mesmo:
ser diante do espelho cativando a própria sorte, desfolhando-a uma a uma como
sua e a nossa sina re-tratadas pela arte.
Livro, óculos, chama, água, assento... assento,
ruídos, risos e chama... passos, roupas (paramentos?), choro... recorrência
musical, braços, pés, idas e vindas...e o som! Incomodativo, orgásmico e
inquietante som.
O som em ondas... serpente dançante a celebrar o
audível desconhecido. “Que cobra é essa que se enreda à própria cauda,
introduzindo-se seu próprio veneno e deixando-se curar por ele? Que tal uma
dança enquanto tudo se desfia? Uma viagem audiovisual onde tudo se acentua e o
corpo nu da atriz se cola no tempo da nossa retina pendurando-nos na parede
imagética do caos celeste que a sua pele nua nos impõe. Trama erótica, eu
diria! Sim, porque o Maurício e a Sandra se conhecem muito bem para não precisarem
omitir seus gestos em personalidades acomodadas e restritas ao qual alguns
chamam ‘personagens’ e outros dirão ‘máscaras’. Não nesse trabalho. No
espetáculo são sui generis, dão-se
apenas. Sexualidades expostas, emoções digeridas a dois, vomitadas por outros.
Cuidados, não há senhoras e senhores, eu diria
igualmente, sob toda sorte de errar do mesmo modo! Diante de mim o que li e
leio são corpos em busca de si no outro, um no outro, a reclamar o nosso para a carnificina gestual mais
profunda do ato teatral. Estamos diante do banquete, onde degustamos e somos
degustados! “E quanto idiotas vivem só sem ter amor?” o Roberto Carlos entra em
som a assombrar-nos a dúvida maldita. E de novo a vida vem, em jato,
inteirinha, numa única jogada, ejaculação na nossa cara que parece tudo
conhecer. E aí eu me vejo a carne sobre a mesa... e eu sendo o prato, e a
servente.
O convite foi para um teatro na laje (acredito que
uma alusão poética ao espaço cênico em uma laje, propriamente dita; um tetro que
sobe uma escada, que se dá no andar de cima.) E como dizer ‘desse átrio em que entramos e no
qual afundamos’ dentro dele? Que tira-nos a clareza da luz, a nitidez do som, a
certeza de uma verdade sobre essas qualidades e coisas, do desejo de um
sentimento leve ao final do ato, sexual-teatral?
Masterização dos órgãos vitais em malha de tecidos
finos, em lâminas quebradiças de imagens circunstanciais pueris, que vem e vão
antes que as reconheçamos como nossas, e são! E assim, o todo vai se
desnovelando, (re) afinando-se e diluindo-se em instantes de ilusão ótica que
se vão como folhas ao vento, pelo sopro do tempo. Nada é o que parece. Fomos
ordinariamente enganados! Ei-nos ao fim em que as escadas entregam-se aos
atores e a penumbra nos enreda como peixes em curral. Isso é o que denominamos
teatro.
“O que
ficou de nós?” Fomos e voltamos. E ante nós a impiedosa crueza da infinitude do
tempo É. E novamente o poema vem me assombrar:
“Em
minha sepultura, ó meu amor, não plantes
Nem
cipreste, nem rosas; nem tristemente cantes.
Sê como
a erva dos túmulos. Que o orvalho
umedece.
E se
quiseres, lembra-te. Se quiseres, esquece.
E assim, Manuel Bandeira, outro poeta vem à mente e
decide por mim. A minha única opção, de fato: lembrar-me para esquecer-te. De
vez? E como?
GAME OVER! THE END sem legendas.
E alguns prováveis outros fins. Retiro os fones.
Vou-me em ondas.
OFF [...]
Espetáculo teatral Assim seja... O
divino High Tech
Ficha
Técnica
Elenco:
Maurício Franco e Sandra Perlin.
Dramaturgia:
Maurício Franco e Sandra Perlin.
Direção:
Nando Lima
Apoio:
Pauli Banhos
Temporadas
2015:
A Casa
da Atriz (Abril/2015)
Da
Tribu (Junho/2015)
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