O corpo urbano do/no terreiro do mundo! Cia Treme Terra na “terra do treme” – Somos todxs Kaiowás!
O corpo urbano do/no terreiro do mundo!
Cia Treme Terra na
“terra do treme” –
Somos todxs Kaiowás!
Rosilene
Cordeiro[1]
Completamente
importante, no atual contexto de lutas, poéticas e estéticas de resistência negra
e afro-indígena ( amplamente muito bem acolhido nas cidades de Castanhal, Santa
Isabel e Belém) a estada da Cia Treme Terra, nos terreiros deste continental
estado afro-ameríndio do território brasilis.
Uma Cia nascida no Morro do Querosene e atualmente atuante no bairro Rio
Pequeno, há dez anos atuando num trabalho na periferia da zona oeste de São
Paulo, contribuindo para a descentralização da produção da música e dança
contemporânea. Durante todo este
período, a Cia vem fomentando atividades de formação nas linguagens de dança e
música, buscando promover a transdisciplinaridade e constituir para um espaço
de discussão, troca e pesquisa acerca da Cultura Negra em diálogo com a
comunidade do entorno.[2]
E é sobre espaços de apresentação proposta pela Cia que me
embrenho nessas matas residuais de túneis de passagens entre África e Brasil,
tão bem costuradas pelos fios da oralidade musicada da mesma, que vou trilhando os caminhos de volta a nossa
ancestralidade desperta pelo espetáculo Terreiro Urbano.
Estive em Castanhal-PA na manhã posterior à apresentação da Cia na
cidade, no dia 07 de abril de 2017 a qual se apresentou no SESC, num espaço
adaptado para a apresentação cênica (uma sala que funciona como uma espécie de
auditório, não um palco convencional). As narrativas do público pós-recepção do
trabalho desses jovens artistas, entre compositores, músicos e bailarinos periférico-militantes
deixavam claro o deslumbramento deixado na instituição pela imersão
proporcionada: “Você precisa ver...você tem que ver! É muito lindo! Perfeito,
mesmo. É um terreiro,mesmo. Um luxo!” – relatou-me um técnico cultural da instituição
com os olhos vidrados de poesia e um riso gratuito de boca inteira na face
feliz.
Em Belém os atuantes passaram pelo Casarão de Bonecos[3],
apresentação sobre a qual os relatos dos espectadores não foram menores. A
poesia do espaço abrilhantada pelo requinte de ‘palco de quintal’, de um
intimismo bem amazônico paraense deu a demão necessária para que os fluxos
trocados fossem de alta conexão, acredito. Lá não estive, tendo acesso ao
espetáculo pelos vídeos, imagens e comentários compartilhados em redes sociais acerca
da sinergia ancestre do ‘trabalho’ em tela - para quem não sabe, povos de
terreiro trabalham todas as vezes em que cantam e dançam para seus deuses e
deusas, onde quer que estejam!
Minha audiência se deu em espaço teatral, especificamente no
Teatro Experimental Waldemar Henrique, nosso mimo identificado como templo
emblemático na história do teatro contemporâneo na região norte do país por sua
natureza epitélio-laboratorial de grupos e companhias que por lá passaram, desde
a década de 70 (de sua criação) vindos de diversos recantos temáticos e
geográficos que desejavam um intercâmbio de afetos de natureza mais “caseira”
pouco protocolar e mais perceptiva das manifestações artísticas em cênicas. Um
trabalho de proscênio, eu diria. E o que poderia ser entendido como decréscimo energético
por alguns desavisados, a mim, confirma o que há tempos tenho desenvolvido nas
ações de “Terreiro é o Mundo!”[4]
nas inserções que vimos fazendo no estado entre pesquisa, cena e atividade
acadêmica.
Não são os espaços que determinam as ações no trabalho, apesar de serem
reveladores de possibilidades sígnicas outros impactos pela poética de contexto
que as representam. São os corpos dos atuantes que nivelam, que nos
teletransportam para dimensões antepassadas espaçotemporais . São corpos que
nos fazem girar e girar nessa volta aos recantos das Áfricas de nossos
imaginários violados pela literatura de uma europa pagã, eurocêntrica, etnocêtrica,
branca coloizadora nossa grande algoz.
Leio, para além da arquitetura cênica, corpos-migrantes de muitos territórios,
corpo-correntezas, marolando nos navios da escravidão, margeados entre campos,
matas, várzeas, traduzidos em quilombos, favelas, senzalas urbanas, zonas
periféricas onde a dor urge ainda, mas os grilhões não foram suficientes para
nosso extermínio. Quando calavam as vozes, (e ainda hoje tentam) não eram capazes
(nem nunca serão!) de isolar os corpos nus, desprovidos de dignidade e precarizados
ao extremo físico e moral, lançados aos banzeiros existenciais rítmicos e
efervescentes de sua verdade história: violada, corrompida, apagada por
séculos, porém jamais vencida, ainda hoje assistida e rememorada em seus
guardiões de viagem.
O que chegou até nós pelos grilhões dessa literatura única e
maniqueísta de vencedores e vencidos nos negou as evidências de uma resistência
histórica, cultural, lingüística, poética, religiosa e estética plurais representativas
de nações inteiras distribuídas por “seus donos” afim de nos segregar .
História européica as quais somos vendidos como dizimados, mas que resistentes,
sobrevivemos nos tornando polivalentes, seus legítimos filhos e filhas e,
portanto, polinizadores dessa outra parte desse enredo antigo que nos permite um
protagonismo macro, múltiplo, equitário, dialógico e possível, que precisa ser re-contado
para que todas e todos, povos negros, afrobrasileiros, afro-ameríndios e seus
descendentes, todos e todas, sem distinção, sejam contados juntos sem noves
fora.
O que se presenciou no TWH refletiu, na noite do dia 11 de abril
de 2017, foi a ebulição de narrativas contemporâneas de corpos periféricos em
rede, corpos-palavras, textos-imagéticos, arquétipos, sonoridades, cores e
matizes multimidiáticos de nações distintas com rostos e localidades familiares;
povos-populações marcadas pelo “brasileiro” entre local e global, sem a
ditadura do golpe e do consumo. Deusas e deuses batuqueiros, rimados, descalços
a benzer com seu suor a terra de nossos avôs e avós, re-inventando a Amazônia assistida
de um sudeste que igualmente a ama e por isso a pesquisa com delicadezas de
ternuras. Quilombo e as lutas por terra são temas que não ficam de fora
compondo, subliminarmente, o texto-base do corporrede em manifest_Ação.
Eis a mística do corpomídia, defendido por Greiner e Katz, como trans, (no texto Por uma teoria do
corpomídia): corpo atravessado pelo vivencial e
artístico, por sua natureza histórico-espacial, como canal e mensagem indissociado
do seu composto étnico ancestrral dilatado considerado por mim como [,,,] “um
corpo cênico nascido da cultura e expandido nesse gigantismo do termo, elevado
à sua potência máxima e imediata de ser e estar no mundo e com o mundo, corpo que sempre me encantou.” Corpos-territórios, corpo
como espaço de um cênico extraordinário porque é, antes, cotidiano, guardador
de toda vida, terra, semente e fruto nesse mundo físico, espiritual, social e
cultural que habitamos nos toranando matéria viva. No caso deles um corpo único
conjugado em ‘companhia’ se dando da forma que é, exatamente como se apresenta
à nossa apreciação: a experiência da percepção, comportando tudo:
contraposições e dualismos extremos, cru e elaborado, sedução e denúncia; pequeno
quando espetacularizado e só, mas grandioso como uma caixinha de detalhes, sem
qualquer esforço de rompimento com essa rotina ordinária da qual o espetáculo
nasce. A cotidianidade da vida carregada de conflitos políticos e singelezas
míticas que a torna esse ciclo entre ir e vir, entre nascer, crescer,
trabalhar, reproduzir, comunicar-se expressando-se e morrer um giro concêntrico entre princípio, meio e
fim sem fim.
No espetáculo “Terreiro
Urbano” o que a Cia Treme Terra revela são corpos cíclicos ‘voltando pra casa’
em cada apresentação, penso eu aqui com minhas folhas. Retornando sempre a eles
mesmos, à vida sem mistérios, como realmente é, em cada dia, todos os dias, vidas
inteiras de uma pesquisa não esgotada no espetáculo. Essa forma de dividir-se
em terreiros como forma ‘repartida’ em círculos atemporais menores e poeris, no
entanto com milhões e milhões de energiz_ações outras coletadas por onde passam
descamando-se e (des) [res] tituíndo-se, des-re-territorializando-se aqui e ali
de outras modalidades de si onde quer
que vá.
A mensagem, entre
outras pode ser lida como um recado: Eis as imagens de nossa vivência mágica
mais funda onde quer que estejamos entre o urbano da cidade, campos, matas ou
florestas! A sociedade do espetáculo midiatizada e tão bem representada na indústria
cultural tem interesse por nós, quer nos absorver para então diluir. Não
embarcaremos nesses novos navios de fundo metálico, espelhados, e com canto de
sereia nesses discursos apregoados pelas lentes de uma mídia arauto do
capitalismo tardio que nos vende como produtos a serem consumidos por bagatela.
Estamos numa economia de mercado, mas nos recusamos a ser reduzidos a obra ou
produto de vitrine ou prateleiras em série (apesar de estarmos em estado de
câmbio estratégico permanente com ele).
Nessa hora de
batalhas políticas inter-nacionais no campo étnico-raciais lembrança e
esquecimentos precisam ser acionados para que a materialidade de nossos acordes
corporais não se percam nos oceanos do mundo. É emergente, urgente, de norte a
sul do país que corpo e memória, memória e história, ritualidade e trabalho,
tempos e espaços, convirjam na possibilidade
de encontros artísticos trans-formadores, nos quais a junção
estética-ética-política-poética, passadas
e presentes, nos oriente para um futuro mais assertivo e autoafirmativo para
povos negros e ameríndios e seus descendentes.
Num xirê[5] de
corpo, bem dosado legitimamente urbano, a cia passou por Belém do Pará celebrando
a vida da cidade, na cidade e nas cidades contempladas com o projeto na benção
de seus/nossxs digníssimxs orixás. Devoção e trabalho marcam uma gira[6] na
qual o figurino conceitual demarca indumentárias afro-contemporâneas totalmente
favorecidas pelos códigos de uma periferia criativa, colorida, fina e juvenil sem
rodeios. Não houve necessidades de máscaras e maguiagens, todo o resto estava
nelxs, eram elxs.
Corpos negros, magro,
gordo, feminino, masculino, em planos alto, médio e baixo cadenciavam o balé
que encontrou nos Kaiowás nosso giro aldeão de meio. Pais e mães de santos ali são
saudados com respeito! Filhos e filhas de santos e santas são re-conhecidos,
lugarizados! A favela, a periferia, o morro e o quilombo encontram o sentido de
re-existir com orgulho e reconhecimento. Estamos realmente em casa!
Descemos do barco,
saímos das senzalas, foi-se o teatro! Caíram os muros, a arquitetura cênica, o
palco foi negado! Correntes foram quebradas substituídas por laços, elos
afetivos quando legbaras celebraram o encontro de aiyé (o mundo) e orum ( a
espiritualidade, o infinito). Todos dançantes irmanados por uma energia de tons
celeste-ancestrais, enquanto o ‘grande público’ invadiu a cena. E todos e todas
foram felizes nesse ‘ali’. As luzes não precisaram ser apagadas, o tambor não
foi silenciado!
No Pará, terra do
treme, o tecno treme o ombro, o jambú treme a boca, o axé treme o corpo e
alcança a alma, cai a humanidade em si, corporific-Ação em/com Terreiro Urbano.
E Tremeeee Terraaaa!! E tremeeeee corrrpooo!
De fato, somos
todos e todas Kaiowás!
Okê arô, Oxossi,
reina de norte a sul!
[1]
Atriz-performeira
amazônida, pesquisadora interdependente, realizadora de cena entre a urb e os
rios da grande floresta. HTTP://pesquisocorpocenico.blogspot.com
[2] Informações obtidas do site do
grupo https://www.nacao.org.br/sobre-1-c4xz
[3] O Casarão dos Bonecos é um espaço centenário que abriga o
grupo In Bust Teatro com Bonecos, desenvolvendo
inúmeros projetos com apresentações de espetáculos, oficinas, workshops,
ensaios de grupos de artes da região e de outros Estados do Brasil. Além dos
espetáculos e da pesquisa acadêmica, o núcleo inbusteiro trabalha na campanha
de restauração do Casarão, localizado na Avenida 16 de novembro, número 815,
Cidade Velha.
[4]
Disponível
no artigo “Lá fora, na boca e no olho da rua!” Narrativas do corpomídia do
performer em “Terreiro é o mundo!”, em Belém do Pará. Texto de minha autoria no
âmbito do Mestrado em Comunicação, Linguagens e Cultura na Universidade da
Amazônia, resultante da disciplina Imaginário e Saberes Amazônicas, em 2017.
[5]
uma palavra Yorubá que significa roda, ou dança utilizada para evocação
dos Orixás conforme cada nação.
[6] Gira ou Jira (no idioma quimbundo nijra, caminho), na Umbanda, lê-se a reunião,
o agrupamento de vários espíritos de uma determinada categoria, que se
manifestam através da incorporação nos médiuns. A gira pode ser festiva, de trabalho ou de treinamento.
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