Encantos de Minerva

"[...] Sempre me moveu o desejo de saber o que ela esconde por trás daquela senilidade velada tão leve e tão bem chegada pra uma mulher de passinhos miúdos, escondidinha em olhos pró- fundos que guardam já 87 anos de uma senhora vida, muito bem vividos! - diria ela 88, visto que seu já falecido pai a registrou no ano de 1921, mesmo ela tendo nascido em 23- sendo esta mais uma fabulosa parte de uma de suas lendárias histórias que pretendo guardar para "destrinchar", quem sabe, num momento futuro...quem sabe guardar comigo desenhada na lembrança de uma existência com ela."

Minerva há muito diz que não gosta de seu nome: MINERVINA DA CONCEIÇÃO PEREIRA. Pereira herdou do marido, com quem casou- se aos 40 anos de idade e com quem não gerou nenhum filho. Ao casar-se com este último (de quem ficou viúva ainda nos anos 80) já trazia consigo três filhas de relacionamentos anteriores dos quais nunca referira boa lembrança, nem pude observar ao longo desses 37 anos privilegiados de vida ao seu lado, nenhuma saudade guardada. Minerva para alguns, Minervina dos documentos, popularmente é conhecida pelos seus, pelos muitos netos e bisnetos que foi fazendo ao longo dos dias e admiradores pelo caminho, como Mimita: a vovó Mimita que "cura garganta", que faz reza pra fortalecer a "mãe do corpo", banho de folhas e cascas de árvore pra tirar o catarro "preso" na cabeça, unguentos e garrafadas pra limpar úteros.

Vovó Mimita é filha de relações familiares interraciais típicas de sua época: seu pai negro retinto de nome Lucas Evangelista, homem garboso e muito conhecido da/ na Ilha do Marajó, natural de Ponta de Pedras entre muitas viagens ao Tartarugueiro/Cachoeira do Arari/Icoaraci na qual exercia o função de dono de uma embarcação bastante popular à época denominada Jandaia, casou- se com sua prima legítima Antonia Rodrigues da Conceição, mulher branca, com quem teve três filhos: Luiz, Minervina e Iraci.

Minerva, como desde pequena a chamavam, era menina pacata, silenciosa e quase não brincava, nunca apanhou do pai e vivia às barras da saia da mãe com seu olhar sempre "pedinte" de cuidados e proteção. Segundo me contava, desde menina, cresceu calada e fraca para doenças, enquanto seus outros irmãos pareciam se desenvolver roliços e donos do seu fazer seguindo o ciclo natural de vida de crianças marajoaras saudáveis,  do interior do estado do Pará. Por possuir um certo "ar deprimido" sempre melancólica, minha bisavó Antônia preocupava- se com o destino da filha do meio e temia não ter forças e saúde suficientes para estar ao seu lado até a idade adulta, uma vez que a a bisa Antônia era mulher de considerável debilidade física segundo conta vovó.
Certa vez, passando um caixeiro viajante pela cidade, a bisa resolveu "tirar-lhe" a sorte, o que aconteceu quando ela ainda era uma doce menina no auge de seus 8 ou 9 anos - a memória hoje oscila entre precisão e dúvida quanto ao tempo exato da ocorrência dos fatos.

Pra surpresa de mãe e filha, quatro pronunciamentos que marcaram suas vidas de forma inusitada, lenta e feroz: 1.  Seria mãe de muitos filhos mas criaria apenas 3; 2. seria viúva várias vezes; 3, sofreria de uma doença grave e terminal que quase a levaria à morte, mas dela não morreria e, finalmente, 4. que morreria aos 80 anos.

Os anos para vovó passaram "comendo-lhe" com sabedoria e espera o melhor de seus dias. Ela então passou a viver em função dos presságios que a espreitavam como impiedosos fantasmas. O tempo correu como um rio que corre esguiu e certeiro embaixo de pontes frágeis, rio capaz de gerar muitas, muitas situações inesperadas e sofridas como algumas que passo a descrever a partir de então.

A bisa morreu com 36 anos deixando vovó órfã de mãe aos 14 anos de idade. Meu bisavó não precisou da viuvez para suas furtivas investidas extra-conjugais. Ainda no fluxo de seu relacionamento com a bisa Antônia, havia sido pai de outras 5 crianças sendo três delas com três de suas "estimadas" cunhadas que, vindo morar com a bisa para auxiliá-la nos cuidados com os filhos do casal, acabavam por engravidar do primo-cunhado, no lar da própria irmã. E nesse universo imbricado de inter-relações parentais confusas e de certo modo incestuosas, minha avó viu-se crescendo, assistindo tudo com total desaprovação sem nada poder fazer, por ser filha e por ser mulher, duas "condições" que à época, negavam- lhe a fala, sobretudo o argumento. Vovó vive sua existência, vez ou outra, relembrando estes fatos como "algo natural" do que o mulher possa esperar de ser e viver na região onde vivemos.

Bem, órfã, sozinha, vovó passou por muitas moradias, vários favores de parentes, muitas humilhações, entre inúmeras histórias, algumas das quais resolvi compartilhar com você que passará a conhecê-la um pouco melhor nas linhas que ousarei dividir nesta empreitada de escriba iniciante. Dentre estas tantas está aquela na qual o meu bisavô incestuoso, Lucas, resolveu casar- se de novo, com uma bela e inexperiente moça de nome Ana (mulher branca, de cabelos longos negros e de olhos claros) que nada ou muito pouco teve a somar com a formação dos filhos do seu 1º casamento. A não ser o fato de ter se interessado pelo irmão da vovó, tio Luiz, enteado moço, belo e atraente que convidava a visitá-la em seu quarto sempre à ausência do marido, o pai dos dois. Vovó, ainda uma adolescente, estremecia com a possibilidade de uma tragédia em família e rogou a Deus pela saída do irmão de casa a tempo de evitar-se o descobrimento da ação da esposa infiel, o que ocorreu graças ao bom Deus, quando seu irmão, mano Luiz, como ela carinhosamente se referia a ele, completou a maior idade e saiu de casa, evitando o pior, como ela temia.

Como o irmão evadiu-se da casa do pai, minha avó materna cansou dos maus tratos e traições da madrasta na ausência do pai, e assim, passou por internato de moças, casas de parentes, casa de irmãos-primos ou primos-irmãos (que a essa altura já eram 9 de 4 mães- irmãs- tias, se é que você me entende!!.). Meu bisavô era uma homem de quem não guardo nenhum desejo de conhecer melhor pelas atrocidades que ia espalhando pelo caminho das mulheres com quem ia cruzando o caminho.

O tempo operou decisivamente sobre ela. Casou- se jovem no momento áureo de sua beleza, com um homem chamado Pedro Trindade- primeiro marido hoje já falecido- que, segundo conta "enjoou" dela logo na "primeira barriga". Deste engravidou três vezes: uma primeira "barriga" perdeu. Na chegada da segunda filha, saiu de casa deixando-a com minha tia Hilda ao colo. Vovó diz que tinha "útero fraco" onde criança gerada tinha poucas chances de sobrevivência. Ficou com a filha ao colo e grávida de uma terceira criança que infelizmente (ou felizmente...) não "vingou" pelo motivo já exposto.

Do segundo relacionamento "relâmpago" com Manoel Apolinário Vitor (já falecido também), riograndense potiguar, homem negro preto retinto autoritário e prepotente, engravidou uma única vez nascendo Higina, minha maravilhosa e inesquecível mãe já deitada no horizonte na tenra idade de 58 estrelas, viçosa e entusiasmada pela vida, motivo de choro pra vovó todos os dias e todas as noites, desde o dia 31/12... dia em que partiu de nós como um cometa veloz deixando um rastro de dor e saudade que desde 2008 nada nem ninguém conseguiu diminuir, muito menos apagar.

No curso dos dias, teve um outro relacionamento mais relâmpago ainda com um certo moço que passou pelas redondezas onde morava e do qual não deseja falar pois lembra pouco. Parece, sequer recordar o nome. Deste não revelado e pouco verbalizado "caso" (que não me ouça ela!) nasceu "Waltinho", seu único filho homem que morreu novinho pois segundo ela, a criança contraiu uma febre por tomar banho num igarapé do Marajó, às 18h horas, à boca da noite, uma vez que ainda não havia sido batizado e "ninguém pediu licença pra mãe d'agua para banhá-lo. Porque pedir permissão, nesse caso, é preciso"- diz vovó, justificando a inexperiência de seu irmão que conduziu o menino às saias da mãe do rio com total inocência. Dessa morte chorou pouco. Sempre dizia que pedia a Deus que desse a ela somente filhas mulheres visto que os homens podiam dar preocupação e ela preferia "chorar a boa morte, que a má sorte", como ainda hoje, vez e outra relembra. Lembra, também que como o filho Walter nasceu com uma pequena lesão no pescoço que não dava sustentação à cabeça dele, ela temia que com o passar dos anos o menino sofresse em decorrência dessa deficiência. E pela passagem dele na vida dela,  e pela perda precoce aos dois aninhos, também agradecia a Deus, sem se maldizer em  nenhum momento.

Morrendo seu único menino e passados alguns anos, o destino cruzou a sua "sorte" com Francisco, seu primo legítimo por parte de mãe, com quem namorou um curto e saudoso período- fato que ela revela somente ao bom entendedor de casos amorosos, por apresentar-se sempre muito discreta, sob expressiva neutralidade, ao precisar falar de assuntos do coração!!. De Francisco engravidou de tia Edna (filha caçula) que parece da mãe herdar a timidez, a delicadeza e o sentido opaco da vida, que parece fluir em preto e branco numa tela linear permanente. Titia hoje tem 57 anos e "saboreia" a vida em cores e dimensões pelos quadros da programação de TV. Não tem nenhum outro interesse senão trabalhar e cuidar de um filho, seu único companheiro, razão de seu existir, para quem dá remédios diários e com quem vai regularmente à igreja. Titia, como a vovó, não "teve sorte" com o pai do filho, então segue a vida sem homem, exceto Edvan, seu grande amor.

Aos 33 anos, mãe que engravidou oito vezes e criou três meninas, já muito curtida da vida difícil de criá-las sem casa própria e marido, vovó Mimita contraiu um câncer de útero evoluindo para a fase terminal, quase levando-a à morte (outra história que pretendo contar mais à frente) e do qual não faleceu, vencendo a enfermidade com remédios caseiros e a fé em Deus. Constantemente foi auxiliada pelos irmãos que sempre viveram de forma fraterna, e a tinham com um carinho todo especial. Enfim, do câncer vovó não morreu, também.

Orgulha-se de contar, como boa leonina do dia 03 de agosto, que seu comportamento de mulher sóbria, fina, bem educada, pacata e muito trabalhadora fez com que ela "arranjasse" um pretendente que ofereceu-lhe casamento aos 40 anos de idade, com o qual casou- se e com quem conviveu por outros dezessete anos. Agenor Pereira, o tal galã malandro (pintor da base aérea, depois pintor de ônibus de profissão era beberrão, mulherengo e farrista de carteirinha! Essa é outra boa história pra contar...rs)  deu-lhe o nome, a casa, o sustento, e raiva, muito desgosto e arrependimento. Mas deste relacionamento conturbado, herdou, FINALMENTE, O SONHO DE TODA SUA EXISTÊNCIA: a sua casa e para sua descendência! Dele, ou melhor dizendo, por meio dele, um anjo chamado Fernando, bateu-lhe um dia à porta da casa na Soledade, em Icoaraci, oferecendo a compra de um terreno para que ela pudesse descansar. Era o sonho da minha avó Dona Mimita ter um lugar onde assentar seu cansaço e poder dividir com as filhas, netos, bisnetos, toda sua descendência futura. É MUITO RUIM VIVER NA CASA ALHEIA, me repetia ela várias vezes ela, a vida inteira.

O terreno foi adquirido na década de 70, na antiga fazendo dos Irmãos Berredos, no Distrito de Icoaraci, onde moramos, ela e tia Edna, desde então, eu  desde o ano de 1980, quando tinha 7 anos. Aqui tivemos e temos muitas vivências boas, alegrias, muita luta, muitas dores, e todas as minhas importantes bases comunitária. Aqui fui forjada pra viver, vencer nunca foi uma palavra cultuada pela nossa minha família, nem materna, nem paterna. LUTAR, SIM! A guerra pra nós é nos manter vivos, seguir nosso caminho respeitando as pessoas, aprendendo com os mais velhos, cuidando da casa, do quintal, recendo bem em casa, sendo bons vizinhos, ajudando quem precisa de nós e cuidando uns dos outros. 

É aqui, nessa casa que nasceu na Passagem Santa Maria, número 145; e que depois de alguns anos ela deixou, trocando o endereço para os fundos desta, a Travessa dos Berredos, número 493, no mesmo Bairro Jardins, por motivo de não conseguir mais morar sozinha, pelo avanço da idade; é bem aqui,  nesse quadrado de chão de muitas memórias, exatos 10m de frente (largura)X 35 de fundos (comprimento), atualmente amorosa e IGUALMENTE DIVIDIDOS em quatro terrenos de 5 metros X 19 metros, ( o dela e das três filhas), que aguarda sobressaltada, a quarta "profecia": aquela que a levaria de nós ao completar 80 anos. E entre uma conversa e outra, minha avó, não cansa de gabar-se muitíssimo de que homem NENHUM, NUNCA tê-la visto nua. Acho que isso é uma coisa da qual a vovó muito se honra, de nunca ter-se dado por inteiro  ou completo aos olhos de quem pensou ou tentou possuí-la. Em face de tanta liberdade que a mulher tem hoje, o corpo dela era o seu próprio santuário, portanto ela o deu como quis. daí o fato de que, hoje, ela presa por usar anáguas, talcos perfumados, sabonetes cheirosos, colônias que exalam seu cheirinho peculiar.

Atualmente, com exatos 87 (ou não!) vovó dividiu o terreno, está arrumando a casa pra deixar pra titia, quer deixar tudo prontinho pra quando a "sua hora" chegar. Já organizou os documentos da funerária guardando-os atualizados religiosamente em dia. As pequenas dívidas que faz no mês as paga com pontualidade com a pensão de um salário mínimo "herdada" do velho Agenor. É dessa moradia, já assentada pela paciência que sempre teve ao aguardar  o tempo agir, com a calma e a serenidade de todos os seus dias, que espera o tempo vir buscá-la. Vez ou outra pego minha avó chorando baixinho, nunca mais foi a mesma sem a mamãe.  A tristeza tomou conta dela e sinto que está se deixando ir lentamente, em pequenos gestos que aprendi a ler nestes tantos anos em sua companhia. 

A saudade é uma lâmina pontiaguda afiadíssima, nos corta sem piedade. Confesso que é muito triste ver uma mãe perder seu amor, uma filha/um filho, sobretudo acompanhar a dor dilacerante de minha avó, a mãe de minha mãe sofrendo, meus dois amores partindo, portanto duas dores indescritíveis no meu corpo também abatido por tudo isso e por outras coisas da vida. É um pedaço dela que nunca mais se recupera, é um pedaço de mim sem o qual preciso aprender a caminhar. A Mimita hoje é saudade, mas ainda é muito cuidado por nós ,por isso ainda está aqui. Diz que pede a Deus que prepare a tia Edna, porque a filha Higina vem levá-la consigo logo, toda de branco, para o repouso esperado, em definitivo ao seu lado. Tem até a roupa e o lençol que quer usar quando partir pro descanso eterno mas, curiosamente, não fala de morte. Comprou o traje há muitos anos e guarda cheiroso para o "esperado" dia da viagem. Lembro que a mamãe, também, escolheu seu traje para o ano novo: era todo branco, com poucos detalhes e foi usado na passagem do ano, na virada da sua existência para a ancestralidade.

Minha "flower", como hoje a chamo, depois de inaugurar seu nome como "a voreca" (como a intitulo desde a minha adolescência), me acorda com uma xícara de café quentinho, na janela do meu quarto, todas as manhãs, como um relógio me chamando ao trabalho. Os passos lentos, miúdos e com ajuda de um andador, denunciam que muitas vezes não consegue mais preparar a nossa deliciosa bebida matinal, trazido a mim ultimamente pelas mãos da tia Edna, mais um gesto delicado peculiar que ela instaurou pra saudar uma nova manhã que chega pra nós como mais um presente de Deus.

Vovó não sabe, mas já há um certo tempo carrega no peito algo além da saudade: uma mancha escura, de outra doença pulmonar crônica da qual, muito provavelmente virá seu descanso junto à filha falecida (ou não! quem se mete com ela que venceu um câncer com ervas?). Mesmo sem nunca ter fumado ou ingerido qualquer substância química que comprometesse a respiração de forma voluntária, desencadeou um enfisema pulmonar por quase vinte anos, e a ele tem sobrevivido. 

Mas como o decênio, anos 80 segue por mais três aninhos, resta-me cultivar minha florzinha, morrendo de medo (a cada novo dia, sempre novo com ela) de um dia ser acionada às pressas pela notícia de que ela foi enfeitar outro jardim.

Hoje interessa-me, ela: a sua voz leve, o seu toque suave, a teimosia de uma rainha caprichosa muito conhecedora de si, o café que tomo com ela, as histórias que ela não cansa de contar e recontar e sua franzina e atraente companhia. Ela e eu pedacinhos da mamãe, de mim, da bisa, das tias e das muitas mulheres das quais me encho de cheiro, diariamente, em busca de novos ares e sentidos, outros sentidos para não cansar de existir e me refazer como pessoa da arte, "arteira", artista de teatro, atriz, gente, pessoa, qualquer coisa se tornando melhor, pois pra isso elas me esculpiram.

Vovó me diz da cena, da vida-cena, das cenas da nossa vida que encena e acena pra mim, na vida que me traduz, do palco que me tradiz. A sua benção, minha avó! [...]".

Rosilene DA CONCEIÇÃO Cordeiro

(Pesquisa artística compartilhada como artigo acadêmico no III Seminário Brasileiro de Poéticas orais. Encantos de Minerva: memória performativa nas rodas de café. 2013. (Seminário). UFRGS/ Porto Alegre).


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