Projeto Corpo Sincrético: Instalação Performativa como percurso educativo em ambientes não escolares


 
Palmácea de Ewá em leque
Wallace Wagner Rodrigues Pantoja[1]


O presente trabalho surgiu não de um projeto de pesquisa, mas da organização de um grupo em busca da construção de uma Instalação Performativa. A ideia que move o grupo é discutir a relação entre corpo e religião, partindo da memória inscrita no corpo que recupera as diversas religiosidades que vivenciamos e, portanto, podem servir de ponte comunicativa e intersubjetiva entre os que são atuantes no processo de construção da instalação. A religiosidade matriz é o Candomblé (a partir da orixá da síntese: Ewá) e o percurso educativo do grupo, bem como dos que participam da instalação, é entrar em contato com esta multiplicidade de sagrados que atravessam nossas memórias e se expressam a partir do corpo enquanto marca e matriz de significados que, sendo assim, podem servir de comunicabilidade e reconhecimento entre os envolvidos. Como é um projeto artístico, não se pretende confinado em ambientes escolares, o que não significa exclui-los. O que se pretende é estabelecer relações de sentido a partir dos símbolos corpóreos veiculados pela instalação, que demanda a efetiva participação do “público” durante e depois, seja participando do ato performativo, seja dialogando suas percepções e comunicando sensações e entendimentos acerca do processo. Emerge, então, um objetivo pedagógico do projeto que é a interação necessária no espaço performativo de múltiplos indivíduos e múltiplas trajetórias religiosas que podem senão encontrar pontos em comum, estabelecer um diálogo possível entre as diversas religiosidades, experiências e memórias dos indivíduos que criam uma “trajetória” de intervenção na instalação artística. O projeto está em andamento e, portanto, não pode definir conclusões, apenas percepções preliminares, uma das mais centrais é a necessidade de problematizar a relação entre arte, educação e religião a partir da matriz africana, seja para lutar contra sua invisibilidade forçada, seja para desmistificar suas referências, evidenciando a dimensão sincrética não de maneira ingênua – a simples mistura ou colagem de elementos religiosos variados hierarquicamente definidos, normalmente a partir do cristianismo – e sim o sincretismo produzido na relação com o outro, no encontro, e também desencontro, de trajetórias de vida investidas de religiosidades passadas, mas que não se apagam simplesmente, sobrevivem num hibridismo cultural cujos agentes, ou seja, os produtores de sentido e do próprio sincretismo, são os indivíduos e não meramente uma instituição superorgânica definidora de dogma e regras a serem seguidas. A importância e justificativa do projeto se revela nesse encontro possível, onde podem ser produzidos diálogos nem sempre concordantes, mas dispostos ao processo de experimentação/comunicação. Realizado em Belém do Pará por um grupo de diferentes profissionais (atores, cenógrafo, figurinista, roteirista, cineasta, geógrafo, músico) em busca não da apresentação que coloque o público como espectador passivo, o que se pretende é a “presentação” ativa no processo de instalação que provoque os indivíduos a experimentar/comunicar suas memórias religiosas e, assim, realizar um espaço de trajetórias que viabilize o sincretismo de sagrados que, para além de suas possibilidades artísticas, pedagógicas ou terapêuticas, crie um espaço de troca de humanidades tão necessário para o entendimento das diversas religiosidades brasileiras, dentro e fora das escolas.

Palavras-chaves: Educação Religiosa, Ambientes não escolares, Instalação Performativa, Ewá.

PROJETO CORPO SINCRÉTICO: INSTALAÇÃO PERFORMATIVA COMO PERCURSO EDUCATIVO EM AMBIENTES NÃO ESCOLARES

Wallace Wagner Rodrigues Pantoja[1] - UNAMA

Partindo da hipótese de que o corpo, enquanto marca e matriz de significados – expressa nossa historicidade e viabiliza nossa geograficidade religiosa, desenvolvemos um projeto artístico denominado “Corpo Sincrético: ‘A partir das 8’ Instalação Performativa na composição de Ewá, a orixá da síntese”, com consequências educativas não previstas, mas incontornáveis, na medida em que a proposta da instalação é o diálogo das religiosidades não apenas dos que produzem a performance, mas dos que estão enquanto “público”, provocados a participar e dialogar com a religiosidade estabelecida a partir dos corpos-atuantes, sem a primazia de uma instituição ou de um conjunto de dogmas estabelecidos, o que está em jogo é como é possível instalar um sincretismo que, fenomenologicamente, flui na relação/provocação que a performance motiva.

Palavras-chaves: Educação Religiosa, Sincretismo, geograficidade do/no, Ewá.

GT5: Imaginário Simbólico e Ensino Religioso

O corpo – Da história religiosa à geograficidade sagrada

Dizer que o Brasil é um país de múltiplas tradições religiosas que se relacionam historicamente é lugar comum, o que não é tão comum é discutir a experiência das relações religiosas e em que contextos e que condições elas se efetivam. Mais incomum ainda é interrogarmo-nos como tais experiências relacionais se dão ao nível do cotidiano, nos pequenos enfrentamentos diários, para além da discussão de diferentes “tradições”, como ocorre às experimentações diárias das relações entre as religiosidades brasileiras?
Obviamente, essa problemática supõe outra, para os fins do texto aqui proposto, como tais experimentais podem servir de diálogo para que se estabeleça uma compreensão mútua dos indivíduos que vivem/viveram diferentes trajetórias religiosas? Importante ressaltar que compreender não significa concordar, mas se posicionar na condição de “outro” sem deixar de sermos nós, tendo em vista uma interpretação consistente possível.
Argumentamos que a experiência religiosa se dá no corpo, pensando aqui não apenas como uma unidade material-biológica, mas, sobretudo, como uma entidade cultural-simbólica, para além de uma extensão passiva onde marcas religiosas (ou quaisquer outras) se fazem, o corpo – enquanto paisagem – é matriz de significados sociais e coletivos (BERQUE, 1999).
O coletivo “Projeto Corpo Sincrético” se propôs a experimentar as diversas religiosidades dos envolvidos construindo uma instalação performativa que

 possibilitasse o partilhamento de vivências, memórias, impressões religiosas, tendo como catalizador o corpo-paisagem, construindo uma geograficidade (o espaço da performance) a partir da posição relacional dos indivíduos e esta geograficidade serve como condição-meio-resultado do diálogo entre as diversas religiosidades – tanto dos diretamente envolvidos no projeto, quanto, e aí está sua dimensão educativa, do público que participa do mesmo, não como espectadores, mas como atuantes na instalação.
Acreditamos com Ligiéro (2011, p. 267) que o “performer [o indivíduo que realiza a performance] deve criar o personagem a partir da sua própria biografia. Aí estaria o material para criar a sua cena; define-se esta estratégia artística como autoperformance”, sendo assim, quando enfatizamos a dimensão da religiosidade na produção da instalação performativa, é a relação pessoal com o(s) sagrado(s) que queremos que irrompa (ELIADE, 2001) através do corpo para que a vivência/reflexão aconteça no espaço da instalação, estabelecendo uma geograficidade (no caso aqui, religiosa) que se refere ás

[...] várias maneiras pelas quais sentimos e reconhecemos ambientes em todas as suas formas, e refere-se ao relacionamento com os espaços e as paisagens, construídas e naturais, que são a base e recursos das habilidades do homem e para as quais há uma fixação existencial (DARDEL apud NOGUEIRA, 2004, p. 214).

As histórias de nossas religiosidades nos marcam, nos atravessam, mas podem ser provocadas ao encontro/diálogo/relação quando instalamos uma geograficidade que convoca os indivíduos a expressar o que lhes fixa em sua existência, partindo da ideia seminal de Geertz (2001, p. 115) que o “[...] mundo não funciona [e não existe humanamente] apenas com crenças, mas dificilmente consegue funcionar sem elas”.

O “Projeto Corpo Sincrético: ‘A partir das 8’ Instalação Performativa na composição de Ewá, a orixá da síntese

Pensado por Rosilene Cordeiro, performer, atriz e pedagoga, o projeto surgiu a partir de experiências bastante pessoais, uma trajetória de vida que experimentou diversos contextos religiosos – cristãos (católico e evangélico), Seicho-no-ie, candomblé, umbanda – que culminaram numa necessidade de pesquisa e expressão, haja vista que:

Ao encontrar-me em EWÁ com sua energia ancestral, lendo-a tão somente, senti-me vasta e ao mesmo tempo tão restrita, apequenada e margeada por signos que me reaproximam do terreiro, da pergunta que move a pesquisa me convidando a adentrar seu átrio por meio da arte cênica performativa, pelas lentes do ritual, como um vulcão que acabou de acordar entrando em erupção, sem retorno (CORDEIRO, s/p, 2013).

A partir dessa necessidade expressiva, um coletivo de profissionais (atores, diretores de teatro, cineasta, cenógrafo, figurinista, roteirista, músico, geógrafo) se reuniu ao projeto proposto para realizar uma série de (a)presentações com o objetivo de estabelecer um mapeamento das experiências religiosas em ato, onde o coletivo do projeto envolve nessa geograficidade a plateia ou público, para que os mesmos possam participar, expressar, dialogar, experimentar no acontecer da instalação a sua trajetória existencial religiosa.
As (a)presentações foram denominadas de “tratamentos” aludindo ao corpo em processo de fazer-se. Importante ressaltar que o processo não significa partir de uma aparência em busca de uma essência ao final dos tratamentos, mas que a sucessão das aparências revela a essência dos indivíduos (SARTRE, 2003) em sua experiência de vida cotidiana ou, nesse caso, em sua experiência sucessiva de encontro com os outros em um contexto posicional ou, se preferirmos, um intermundo – a instalação performativa – que mediatiza as relações entre os indivíduos (MERLEAU-PONTY, 1999), e o(s) corpo(s) enquanto habitantes não dissociados desse intermundo podem emitir e receber impressões, ser marca e matriz de sentido, dialogar, refletir e (re)significar tendo em vista uma comunicabilidade mútua que possa levar à compreensão de e com o(s) outro(s) ao nível religioso.
Os tratamentos começaram em Abril de 2013 e seguem com previsão de término do projeto em Outubro de 2013, e a metodologia de ação pode inclusive servir de caminho para se pensar outras temáticas possíveis em ambientes escolares e não-escolares.
1.   São 8 tratamentos, denominados: o corpo-..., o corpo-..., o corpo-foge, o corpo-vigia, o corpo-trai, o corpo-comunga, o corpo-celebra, o corpo-veste. Para cada um dos tratamentos há uma reelaboração da instalação agregando elementos das instalações anteriores;
2.   A escolha da orixá Ewá[2] é tanto pessoal, da performer e pedagoga, mas também por possibilitar um diálogo com as matrizes africanas tão relegadas quando se fala de religiosidade e educação no Brasil, bem como possibilita produzir enfrentamentos/cumplicidades com o público participante que pode tanto realizar o exercício do diálogo e compreensão, como pode produzir resistência e negação, tendo em vista suas próprias matrizes religiosas.
3.   O público é provocado a participação nos diversos tratamentos, seja no convite a performance (que não supõe um conhecimento estrito de atuação), seja por estímulo a fotografar, registrar em um diário coletivo suas impressões, filmagens depois partilhadas ou rodas de bate-papo posteriores;
4.    As impressões/intervenções do público (que deixa de ser espectador para ser participante, embora nem todos se envolvam, algo previsto e respeitado) é canalizada na concepção do tratamento seguinte, gerando uma sinergia dialógica que não perde as contribuições/compreensões anteriores.
5.   Os materiais produzidos – imagens, vídeos, textos, desenhos – são tanto veiculados por redes sociais, onde suscitam novos debates e percepções, como são reunidos na página do Projeto Corpo Sincrético e no Blog[3] da atriz/performer Rosilene Cordeiro, sendo creditados como o coletivo.
Discutiremos agora a partir dos materiais produzidos para explicitarmos a ideia motivadora de “síntese” no sincretismo a partir de Ewá – embora não se esgote e não se restrinja a ela – bem como o processo educativo em um ambiente não-escolar a partir da performance.

Mapeando os corpos: a coetaneidade no lugar sacralizado

A geograficidade é um modo de ser na existência (DARDEL, 2011), sendo assim há uma unidade entre ser humano, seu corpo, seus sentidos/ideias e o espaço, tal concepção pode ser captada de diversas formas, mas enfatizaremos aqui duas intimamente ligadas ao projeto e sua dimensão educativa: o mapa e o lugar.
Enquanto mapa, não pensamos simplesmente uma “representação gráfica” de um espaço delimitado. Há dois desdobramentos possíveis do mapeamento que buscamos provocar, um ao nível ideal-individual, outro ao nível concreto-coletivo. No primeiro caso falamos de “mapas mentais” (TUAN, 1983; PETCHENIK, 1995; CLAVAL, 2007; entre outros), no segundo caso falamos de algo mais complexo, que não pode ser simplesmente representado, decalcado e sim vivenciado em ato, atingindo quase uma “irrepresentação” espacial (MASSEY, 2008).
No que se refere aos mapas mentais da religiosidade, buscamos provoca-los como expressões individuais, haja vista que revelam o conhecimento tácito, experiência e internalizado pelos indivíduos na sua relação imediata com o espaço (PETCHENIK, 1995). Nesse sentido, mapas mentais foram produzidos, inclusive por crianças como mostra o desenho a seguir:

Desenho Sulamita!!!

O desenho foi produzido por uma criança no caderno coletivo do projeto, embora outros desenhos também tenham sido produzidos por diversos participantes. Não é apenas um desenho, é a percepção de relações posicionais que instituem um lugar de encontro a partir da performance, na medida em que a criança traça os indivíduos em ação e expressa grandezas e palavras, como no caso EWÁ, há a exteriorização de algo que a mobilizou, despertou sua atenção de alguma forma não verbalizada, mas capturada, representada em mapa mental.
Sabemos, obviamente, que os mapas mentais são utilizados amplamente como metodologia educativa em séries iniciais e em pesquisas sobre percepção do espaço (LYNCH, 1999), mas nos interessa um mapeamento mental não apenas de uma extensão, mas de um lugar e, claro, que evidencie não apenas a materialidade capturada pelo indivíduo, mas também sua compreensão simbólica do que a instalação performativa evoca.
A outra acepção do mapeamento é, no limite, a sua própria negação. Na medida em que a performance institui sua geograficidade, os envolvidos – integrantes e público – passam a construir um jogo de posições relacionais típico da performance, onde cada um estabelece conexões com outros, trazendo suas memórias, histórias, vivências religiosas através da fala, do canto, do corpo, de um objeto precioso, provocando mudanças e novas conexões na instalação performativa. Aqui o sentido de mapeamento como representação não cabe, o que temos é uma cartografia de vivências partilhadas sem que se possa produzir uma efetiva representação da mesma.

Quando o tambor toca meu corpo vibra, cada pedacinho do meu ser! (Andréa Rocha, cristã, partilhando a preparação para o Corpo-Comunga, onde a performance apresentou elementos cristãos, orientais e do candomblé);
Para quem está de fora, como eu, reconheço elementos importantes da religiosidade, mas sinto que falta de uma história, um enredo mais explicado. (Luís Otávio, católico, partilhando a performance o Corpo-Vigia, onde emergiram elementos do paganismo, candomblé e catolicismo, protestantismo).
É o encontro da dualidade entre Ewá e Oxumaré (Mateus Moura, sem religião declarada, com experiências no Daime e Candomblé, no caderno coletivo do Projeto Corpo Sincrético).
Percebo as energias aqui, uma confluência de energias muitas vezes opostas que coabitam no mesmo espaço, o que é muito difícil, Ewá partilhando com o Egum [ancestral] não é uma coisa simples, são energias muito diferentes (Nilson Saldanha, Babalorixá, partilhando a performance Corpo Trai, onde despontaram elementos do catolicismo popular, paganismo, candomblé, Seicho-No-Ie).

As falas de alguns participantes – diretos e indiretos do projeto – dão o tom dos tratamentos realizados: a) não há uma percepção apenas, há múltiplas percepções da performance; b) a geograficidade estabelecida convida os envolvidos a partilharem suas experiências com o grupo, sua religiosidade mais íntima e, ao mesmo tempo, mais cotidiana, é comunicada; c) há diversas camadas de entendimento e compreensão, sem um controle que tente ordená-las hierarquicamente; d) não é possível produzir uma representação efetiva, um mapeamento no sentido de “colocar tudo em ordem sob a tutelagem de uma narrativa predominante do período” (MASSEY, 2008, p. 123).
Essa necessidade de ordenação narrativa de um coletivo solapa a própria realidade da vivência espacial dos indivíduos, acaba por negar a possibilidade da multiplicidade de conexões não hierarquizadas (MASSEY, 2008). Ainda que a autora não discuta a questão da irrepresentação espacial a partir do tema aqui exposto, sua discussão nos ajuda a compreender o que propomos como possível sincretismo religioso, realizado na coexistência dos múltiplos, ao que Massey (2008) definiu como “coetaneidade”.
Além do mapeamento e irrepresentação, outro processo que destacamos com importantes implicações educativas da religiosidade é a instituição de um “lugar”, no sentido de estabilidade, afetividade e familiaridade constituída (TUAN, 1983), o lugar é um ponto no espaço total de onde nos situamos e nos reconhecemos, este processo de reconhecimento é produzido na experiência enquanto continuum “que abrange as diferentes maneiras através das quais uma pessoa conhece e constrói a realidade” (TUAN, 1983, p. 9). A experiência então é constituída de sensações, percepções e concepções.

Me senti a vontade aqui para vivenciar estas coisas, porque gosto de algo que me desperte e me chame a atenção (Hugo Cordeiro, partilhando a performance o Corpo-Comunga);
Não me surpreendi porque participo de rituais, vivo isso como algo natural (Denis Bezerra, partilhando a performance o Corpo Comunga).
Estou completamente a vontade realizando a performance, quero ver até onde pode ir isto! (Mailson Soares, integrante da instalação, em reunião do projeto);
Esse projeto me deixa dúvidas, porque penso que é e não é o que penso, quando tenho certeza que é por um caminho, aparece o inesperado (Maurício Franco, integrante da instalação, partilhando a performance o Corpo Foge);
Estou bem, aqui, com vocês, não preciso falar nada, só quero estar (Cláudio Dídima, partilhando a performance o Corpo-Comunga, quando a plateia abandonou a arquibancada onde ocorreu a instalação performativa e entrou na mesma, sentando, deitando, auxiliando nos movimentos, se alimentando).
Estou cuidando de vocês durante a performance, que é tanto o meu papel de mulher quanto o meu papel no terreiro, o cuidado é o meu motivador nesse tratamento (Rosilene Cordeiro, partilhando a performance o Corpo-Trai).

As falas trazem impressões muito fortes sobre a instituição de um lugar enquanto espaço de relações afetivas e sagradas, fundamental para a produção da coetaneidade e diálogo inter-religioso. Os indivíduos nesse processo tornam-se um coletivo, sem que isso acarrete uma massificação ou anulação das individualidades ou mesmo das confusões e conflitualidades, como também as falas explicitam.
Esta conflitualidade contradiz em parte o conceito de lugar a partir de Y-Fu Tuan (1983, p. 198) “[...] um mundo de significado organizado. É essencialmente um conceito estático. Se víssemos o mundo como um processo, em constante mudança, não seríamos capazes de desenvolver nenhum sentido de lugar”. Acreditamos que tanto a estabilidade quanto a mudança, tanto o que é estático quanto o que é movimento compõe o lugar, que não é fruto de uma concordância do coletivo, comporta conflitos, mas conflitos estes construídos a partir de uma posição compreensiva e dialógica.
Cabe ainda ressaltar a fala de Rosilene Cordeiro no que se refere ao “cuidado”, que não podemos conceber apenas no sentido idealizado, mas, sobretudo, em sentido existencial – o cuidado como uma abertura para o mundo e para o outro, na medida em que nos reconhecemos como ser no mundo, assumimos a atitude de dar conta de nossos atos e, ainda que isso leve a angústia diante da pressão da existência, também possibilita um retorno consciente a nós mesmos e a nossa voz, uma autenticidade que não se pretende verdade universal, mas um viver para si e para o outro e, de modo mais amplo, para o mundo, numa atitude libertadora que atravessa o falatório cotidiano para instituir a conquista do universo existencial (Heidegger, 2012).
A partir do momento que tomamos para nós a responsabilidade de nossa existência e nos direcionamos para o lugar e o mundo, há uma alegria e uma completude fundamentais (HEIDEGGER, 2012). Interessante que após os diversos tratamentos a sensação de completude e entendimento do momento sagrado partilhado é evidente, tanto para os integrantes do projeto, quanto para os que participam enquanto público-atuante.
Obviamente, nem todos constroem esta vinculação e este cuidado no acontecer da instalação, já ocorreram casos de algumas pessoas comprometidas com sua religiosidade específica abandonarem a instalação quando a performance de Ewá inicia, porém, até mesmo esta postura de não abertura é compreendida enquanto aspecto relevante do projeto. Na fala de um dos integrantes “Eu experimento com tranquilidade o momento, mas minha irmã, que é católica fervorosa ia fugir na hora que os elementos de candomblé se apresentassem” (participante do tratamento Corpo-Comunga, em roda de bate-papo posterior).
A coetaneidade não é a coexistência dos múltiplos por conexões já dadas, as conexões devem ser construídas numa atitude de abertura ao outro, não mais pensado como inferior, atrasado ou estranho, mas diverso, uma trajetória que tem sua própria historicidade e que pode dialogar com a nossa, abrir determinadas conexões pode implicar em fechar outras (MASSEY, 2008).
As implicações educativas e políticas da concepção e proposta metodológica aqui encaminhada (mas não finalizada) são evidentes. O espaço que emerge desta proposta-pesquisa se levanta contra um tipo de “imaginação espacial” que produzimos onde o lugar é apenas uma superfície na qual os outros, a partir de nossa concepção, esvaziados de sentido, tem uma religiosidade menos verdadeira, antiquada ou pavorosa; nós, carregando a história e nossas experiências “atravessamos” os outros que estão na superfície de um lugar qualquer.
Massey (2008, pp. 21-22) relata o encontro de Cortez, conquistador espanhol, com os astecas na cidade de Tenochtitlán, onde o conquistador em sua trajetória densa de significado, de sacralidade, de história, atravessa o espaço – do seu ponto de vista – para tomar a cidade nativa, como se os astecas estivessem paralisados a sua espera, sem história e sem trajetórias próprias.

Tal espaço torna mais difícil ver, em nossa imaginação, as histórias que os astecas também estavam vivendo e produzindo. O que poderia significar reorientar essa imaginação, questionar esse hábito de pensar o espaço como uma superfície? Se, em vez disso, concebêssemos um encontro de histórias, o que aconteceria às nossas imaginações implícitas de tempo e espaço? (MASSEY, 2008, p. 23).

É justamente o exercício do encontro e do cuidado com a história religiosa dos outros e com os outros que queremos levantar como alternativa para se pensar uma educação religiosa na cotidianidade, conceber o encontro através da instalação performativa é um caminho de abertura para essa possibilidade de existência que entende o corpo e o ser em unidade com o espaço construído na relação com o diverso, o múltiplo e o sincrético. Não há respostas prontas a esta desafio, mas a pesquisa em processo e a atitude desencadeada trazem elementos importantes para pôr em debate nossas imaginações religiosas espaciais.

Referências

BERQUE, A. Paisagem-Marca, Paisagem-Matriz: Elementos da Problemática para uma Geografia Cultural. In: ROSENDAHL, Z. & CORRÊA, R. L. (Orgs.). Paisagem, Tempo e Cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1999.

CORDEIRO, R. Corpo Sincrético: “A partir das 8” INstalação PERFORMativa na composição de Ewá, a orixá da síntese. Disponível em: http://rosileneporsimesma.blogspot.com.br/2013/05/corpo-sincretico-partir-das-8.html, acesso em 02.08.2013.

CLAVAL, P. A Geografia Cultural. 3 ed. Florianópolis: Ed. UFSC, 2007.

DARDEL, E. O Homem e A Terra, Natureza da Realidade Geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2011.

ELIADE, M. O Sagrado e o Profano – A Essência das Religiões. São Paulo: Martin Fontes, 2001.

GEERTZ, C. Nova Luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
LIGIÉRO, Z. Corpo a Corpo. Estudo das performances brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.

HEIDEGGER, M. Ser e Tempo [Edição Bilíngue]. São Paulo: Unicamp e Ed.Vozes (RJ), 2012.

LYNCH, K. A Imagem da Cidade. São Paulo: Martin Fontes, 1999.

MASSEY, D. Pelo Espaço. Uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand, 2008.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martin Fontes, 1999.

NOGUEIRA, A. R. B. Uma interpretação fenomenológica da geografia. In: GALENO, A.; SILVA, A. A. D. da (Orgs.). Geografia ciência dos complexus: ensaios transdisciplinares. Porto Alegre: Sulina, 2004.

PETCHENIK, B. B. Cognição e cartografia. Geocartografia. n.6, São Paulo: USP, 1995.

SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2003.

TUAN, Y. Espaço e Lugar. São Paulo: Difel, 1993.







[1] Mestre em Geografia pela UFPA, Professor da Universidade da Amazônia, integrante do Grupo de Pesquisa Sociedade Cultura e Identidade, atuando na linha de pesquisa Geograficidades Amazônicas: espaço, identidade e política, email: wallacepantoja@unama.br.
[2] Orixá do Candomblé ligada à água, tendo uma corporeidade feminina e misteriosa, representada por uma serpente e tendo como elemento a Lua.
[3] A página na rede social facebook é https://www.facebook.com/groups/129037877263045/?fre
f=ts, embora seja um grupo fechado, novos integrantes vão se agregando a cada tratamento; o Blog em questão é http://pesquisocorpocenico.blogspot.com.br/, este de livre acesso e contendo detalhes do processo.





[1] Mestre em Geografia Cultural com enfoque em Religiosidade. Especialista em . Coordenador Professor pesquisador de Geografia na Universidade da Amazônia e SEDUC- PA. ‘Corpo rede’ integrante do Coletivo Projeto Corpo Sincrético com INstalação PERFORMativa Corpo Sincrético ‘A partir das 8’ com Ewá em sucessivos estados de presentações em Belém/PA no ano de 2013.

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