Projeto Corpo Sincrético: Instalação Performativa como percurso educativo em ambientes não escolares
O
presente trabalho surgiu não de um projeto de pesquisa, mas da organização de
um grupo em busca da construção de uma Instalação Performativa. A ideia que
move o grupo é discutir a relação entre corpo e religião, partindo da memória
inscrita no corpo que recupera as diversas religiosidades que vivenciamos e,
portanto, podem servir de ponte comunicativa e intersubjetiva entre os que são
atuantes no processo de construção da instalação. A religiosidade matriz é o Candomblé
(a partir da orixá da síntese: Ewá) e o percurso educativo do grupo, bem como
dos que participam da instalação, é entrar em contato com esta multiplicidade
de sagrados que atravessam nossas memórias e se expressam a partir do corpo
enquanto marca e matriz de significados que, sendo assim, podem servir de
comunicabilidade e reconhecimento entre os envolvidos. Como é um projeto
artístico, não se pretende confinado em ambientes escolares, o que não
significa exclui-los. O que se pretende é estabelecer relações de sentido a
partir dos símbolos corpóreos veiculados pela instalação, que demanda a efetiva
participação do “público” durante e depois, seja participando do ato
performativo, seja dialogando suas percepções e comunicando sensações e
entendimentos acerca do processo. Emerge, então, um objetivo pedagógico do
projeto que é a interação necessária no espaço performativo de múltiplos
indivíduos e múltiplas trajetórias religiosas que podem senão encontrar pontos
em comum, estabelecer um diálogo possível entre as diversas religiosidades,
experiências e memórias dos indivíduos que criam uma “trajetória” de
intervenção na instalação artística. O projeto está em andamento e, portanto,
não pode definir conclusões, apenas percepções preliminares, uma das mais centrais
é a necessidade de problematizar a relação entre arte, educação e religião a
partir da matriz africana, seja para lutar contra sua invisibilidade forçada,
seja para desmistificar suas referências, evidenciando a dimensão sincrética
não de maneira ingênua – a simples mistura ou colagem de elementos religiosos
variados hierarquicamente definidos, normalmente a partir do cristianismo – e
sim o sincretismo produzido na relação com o outro, no encontro, e também
desencontro, de trajetórias de vida investidas de religiosidades passadas, mas
que não se apagam simplesmente, sobrevivem num hibridismo cultural cujos
agentes, ou seja, os produtores de sentido e do próprio sincretismo, são os
indivíduos e não meramente uma instituição superorgânica definidora de dogma e
regras a serem seguidas. A importância e justificativa do projeto se revela nesse
encontro possível, onde podem ser produzidos diálogos nem sempre concordantes,
mas dispostos ao processo de experimentação/comunicação. Realizado em Belém do
Pará por um grupo de diferentes profissionais (atores, cenógrafo, figurinista,
roteirista, cineasta, geógrafo, músico) em busca não da apresentação que
coloque o público como espectador passivo, o que se pretende é a “presentação”
ativa no processo de instalação que provoque os indivíduos a
experimentar/comunicar suas memórias religiosas e, assim, realizar um espaço de
trajetórias que viabilize o sincretismo de sagrados que, para além de suas
possibilidades artísticas, pedagógicas ou terapêuticas, crie um espaço de troca
de humanidades tão necessário para o entendimento das diversas religiosidades
brasileiras, dentro e fora das escolas.
Palavras-chaves: Educação Religiosa,
Ambientes não escolares, Instalação Performativa, Ewá.
PROJETO CORPO
SINCRÉTICO: INSTALAÇÃO PERFORMATIVA COMO PERCURSO EDUCATIVO EM AMBIENTES NÃO
ESCOLARES
Wallace Wagner Rodrigues Pantoja[1] -
UNAMA
Partindo
da hipótese de que o corpo, enquanto marca e matriz de significados – expressa
nossa historicidade e viabiliza nossa geograficidade religiosa, desenvolvemos
um projeto artístico denominado “Corpo Sincrético: ‘A partir das 8’ Instalação
Performativa na composição de Ewá, a orixá da síntese”, com consequências
educativas não previstas, mas incontornáveis, na medida em que a proposta da
instalação é o diálogo das religiosidades não apenas dos que produzem a performance,
mas dos que estão enquanto “público”, provocados a participar e dialogar com a
religiosidade estabelecida a partir dos corpos-atuantes, sem a primazia de uma
instituição ou de um conjunto de dogmas estabelecidos, o que está em jogo é
como é possível instalar um sincretismo que, fenomenologicamente, flui na
relação/provocação que a performance motiva.
Palavras-chaves:
Educação Religiosa, Sincretismo, geograficidade do/no, Ewá.
GT5:
Imaginário Simbólico e Ensino Religioso
O corpo – Da história
religiosa à geograficidade sagrada
Dizer que o Brasil é um país de
múltiplas tradições religiosas que se relacionam historicamente é lugar comum,
o que não é tão comum é discutir a experiência das relações religiosas e em que
contextos e que condições elas se efetivam. Mais incomum ainda é interrogarmo-nos
como tais experiências relacionais se dão ao nível do cotidiano, nos pequenos
enfrentamentos diários, para além da discussão de diferentes “tradições”, como
ocorre às experimentações diárias das relações entre as religiosidades
brasileiras?
Obviamente, essa problemática supõe
outra, para os fins do texto aqui proposto, como tais experimentais podem servir
de diálogo para que se estabeleça uma compreensão mútua dos indivíduos que vivem/viveram
diferentes trajetórias religiosas? Importante ressaltar que compreender não
significa concordar, mas se posicionar na condição de “outro” sem deixar de
sermos nós, tendo em vista uma interpretação consistente possível.
Argumentamos que a experiência
religiosa se dá no corpo, pensando aqui não apenas como uma unidade
material-biológica, mas, sobretudo, como uma entidade cultural-simbólica, para
além de uma extensão passiva onde marcas religiosas (ou quaisquer outras) se
fazem, o corpo – enquanto paisagem – é matriz de significados sociais e
coletivos (BERQUE, 1999).
O coletivo “Projeto Corpo Sincrético”
se propôs a experimentar as diversas religiosidades dos envolvidos construindo
uma instalação performativa que
possibilitasse o partilhamento de vivências,
memórias, impressões religiosas, tendo como catalizador o corpo-paisagem,
construindo uma geograficidade (o espaço da performance) a partir da posição
relacional dos indivíduos e esta geograficidade serve como condição-meio-resultado
do diálogo entre as diversas religiosidades – tanto dos diretamente envolvidos
no projeto, quanto, e aí está sua dimensão educativa, do público que participa
do mesmo, não como espectadores, mas como atuantes na instalação.
Acreditamos com Ligiéro (2011, p. 267)
que o “performer [o indivíduo que
realiza a performance] deve criar o
personagem a partir da sua própria biografia. Aí estaria o material para criar
a sua cena; define-se esta estratégia artística como autoperformance”, sendo
assim, quando enfatizamos a dimensão da religiosidade na produção da instalação
performativa, é a relação pessoal com o(s) sagrado(s) que queremos que irrompa
(ELIADE, 2001) através do corpo para que a vivência/reflexão aconteça no espaço
da instalação, estabelecendo uma geograficidade (no caso aqui, religiosa) que
se refere ás
[...] várias maneiras pelas quais sentimos e
reconhecemos ambientes em todas as suas formas, e refere-se ao relacionamento
com os espaços e as paisagens, construídas e naturais, que são a base e
recursos das habilidades do homem e para as quais há uma fixação existencial
(DARDEL apud
NOGUEIRA, 2004, p. 214).
As histórias de nossas religiosidades
nos marcam, nos atravessam, mas podem ser provocadas ao
encontro/diálogo/relação quando instalamos uma geograficidade que convoca os
indivíduos a expressar o que lhes fixa em sua existência, partindo da ideia
seminal de Geertz (2001, p. 115) que o “[...] mundo não funciona [e não existe
humanamente] apenas com crenças, mas dificilmente consegue funcionar sem elas”.
O “Projeto Corpo Sincrético: ‘A partir
das 8’ Instalação Performativa na composição de Ewá, a orixá da síntese
Pensado por Rosilene Cordeiro, performer, atriz e pedagoga, o projeto
surgiu a partir de experiências bastante pessoais, uma trajetória de vida que
experimentou diversos contextos religiosos – cristãos (católico e evangélico), Seicho-no-ie,
candomblé, umbanda – que culminaram numa necessidade de pesquisa e expressão,
haja vista que:
Ao encontrar-me em EWÁ com sua energia
ancestral, lendo-a tão somente, senti-me vasta e ao mesmo tempo tão restrita,
apequenada e margeada por signos que me reaproximam do terreiro, da pergunta
que move a pesquisa me convidando a adentrar seu átrio por meio da arte cênica
performativa, pelas lentes do ritual, como um vulcão que acabou de acordar
entrando em erupção, sem retorno (CORDEIRO, s/p, 2013).
A partir dessa necessidade expressiva,
um coletivo de profissionais (atores, diretores de teatro, cineasta, cenógrafo,
figurinista, roteirista, músico, geógrafo) se reuniu ao projeto proposto para
realizar uma série de (a)presentações com o objetivo de estabelecer um
mapeamento das experiências religiosas em ato, onde o coletivo do projeto
envolve nessa geograficidade a plateia ou público, para que os mesmos possam
participar, expressar, dialogar, experimentar no acontecer da instalação a sua
trajetória existencial religiosa.
As (a)presentações foram denominadas
de “tratamentos” aludindo ao corpo em processo de fazer-se. Importante
ressaltar que o processo não significa partir de uma aparência em busca de uma
essência ao final dos tratamentos, mas que a sucessão das aparências revela a
essência dos indivíduos (SARTRE, 2003) em sua experiência de vida cotidiana ou,
nesse caso, em sua experiência sucessiva de encontro com os outros em um
contexto posicional ou, se preferirmos, um intermundo – a instalação
performativa – que mediatiza as relações entre os indivíduos (MERLEAU-PONTY, 1999),
e o(s) corpo(s) enquanto habitantes não dissociados desse intermundo podem
emitir e receber impressões, ser marca e matriz de sentido, dialogar, refletir
e (re)significar tendo em vista uma comunicabilidade mútua que possa levar à
compreensão de e com o(s) outro(s) ao nível religioso.
Os tratamentos começaram em Abril de
2013 e seguem com previsão de término do projeto em Outubro de 2013, e a
metodologia de ação pode inclusive servir de caminho para se pensar outras
temáticas possíveis em ambientes escolares e não-escolares.
1.
São
8 tratamentos, denominados: o corpo-..., o corpo-..., o corpo-foge, o corpo-vigia,
o corpo-trai, o corpo-comunga, o corpo-celebra, o corpo-veste. Para cada um dos
tratamentos há uma reelaboração da instalação agregando elementos das
instalações anteriores;
2.
A
escolha da orixá Ewá[2] é
tanto pessoal, da performer e
pedagoga, mas também por possibilitar um diálogo com as matrizes africanas tão
relegadas quando se fala de religiosidade e educação no Brasil, bem como
possibilita produzir enfrentamentos/cumplicidades com o público participante
que pode tanto realizar o exercício do diálogo e compreensão, como pode
produzir resistência e negação, tendo em vista suas próprias matrizes
religiosas.
3.
O
público é provocado a participação nos diversos tratamentos, seja no convite a
performance (que não supõe um conhecimento estrito de atuação), seja por
estímulo a fotografar, registrar em um diário coletivo suas impressões,
filmagens depois partilhadas ou rodas de bate-papo posteriores;
4.
As impressões/intervenções do público (que
deixa de ser espectador para ser participante, embora nem todos se envolvam,
algo previsto e respeitado) é canalizada na concepção do tratamento seguinte,
gerando uma sinergia dialógica que não perde as contribuições/compreensões
anteriores.
5.
Os
materiais produzidos – imagens, vídeos, textos, desenhos – são tanto veiculados
por redes sociais, onde suscitam novos debates e percepções, como são reunidos
na página do Projeto Corpo Sincrético e no Blog[3] da
atriz/performer Rosilene Cordeiro,
sendo creditados como o coletivo.
Discutiremos agora a partir dos
materiais produzidos para explicitarmos a ideia motivadora de “síntese” no
sincretismo a partir de Ewá – embora não se esgote e não se restrinja a ela –
bem como o processo educativo em um ambiente não-escolar a partir da
performance.
Mapeando os corpos: a
coetaneidade no lugar sacralizado
A geograficidade é um modo de ser na
existência (DARDEL, 2011), sendo assim há uma unidade entre ser humano, seu
corpo, seus sentidos/ideias e o espaço, tal concepção pode ser captada de
diversas formas, mas enfatizaremos aqui duas intimamente ligadas ao projeto e
sua dimensão educativa: o mapa e o lugar.
Enquanto mapa, não pensamos
simplesmente uma “representação gráfica” de um espaço delimitado. Há dois
desdobramentos possíveis do mapeamento que buscamos provocar, um ao nível
ideal-individual, outro ao nível concreto-coletivo. No primeiro caso falamos de
“mapas mentais” (TUAN, 1983; PETCHENIK,
1995; CLAVAL, 2007; entre outros), no segundo caso falamos de algo mais complexo,
que não pode ser simplesmente representado, decalcado e sim vivenciado em ato,
atingindo quase uma “irrepresentação” espacial (MASSEY, 2008).
No que se refere aos mapas mentais da
religiosidade, buscamos provoca-los como expressões individuais, haja vista que
revelam o conhecimento tácito, experiência e internalizado pelos indivíduos na
sua relação imediata com o espaço (PETCHENIK,
1995). Nesse sentido, mapas mentais foram produzidos, inclusive por crianças
como mostra o desenho a seguir:
Desenho Sulamita!!!
O desenho foi produzido por uma criança no caderno
coletivo do projeto, embora outros desenhos também tenham sido produzidos por
diversos participantes. Não é apenas um desenho, é a percepção de relações
posicionais que instituem um lugar de encontro a partir da performance, na
medida em que a criança traça os indivíduos em ação e expressa grandezas e
palavras, como no caso EWÁ, há a exteriorização de algo que a mobilizou,
despertou sua atenção de alguma forma não verbalizada, mas capturada, representada
em mapa mental.
Sabemos, obviamente, que os mapas mentais são
utilizados amplamente como metodologia educativa em séries iniciais e em
pesquisas sobre percepção do espaço (LYNCH, 1999), mas nos interessa um
mapeamento mental não apenas de uma extensão, mas de um lugar e, claro, que
evidencie não apenas a materialidade capturada pelo indivíduo, mas também sua
compreensão simbólica do que a instalação performativa evoca.
A outra acepção do mapeamento é, no limite, a sua
própria negação. Na medida em que a performance institui sua geograficidade, os
envolvidos – integrantes e público – passam a construir um jogo de posições
relacionais típico da performance, onde cada um estabelece conexões com outros,
trazendo suas memórias, histórias, vivências religiosas através da fala, do
canto, do corpo, de um objeto precioso, provocando mudanças e novas conexões na
instalação performativa. Aqui o sentido de mapeamento como representação não
cabe, o que temos é uma cartografia de vivências partilhadas sem que se possa
produzir uma efetiva representação da mesma.
Quando o tambor toca meu corpo vibra, cada
pedacinho do meu ser! (Andréa Rocha, cristã, partilhando a preparação para o
Corpo-Comunga, onde a performance apresentou elementos cristãos, orientais e do
candomblé);
Para quem está de fora, como eu, reconheço
elementos importantes da religiosidade, mas sinto que falta de uma história, um
enredo mais explicado. (Luís Otávio, católico, partilhando a performance o
Corpo-Vigia, onde emergiram elementos do paganismo, candomblé e catolicismo,
protestantismo).
É o encontro da dualidade entre Ewá e Oxumaré
(Mateus Moura, sem religião declarada, com experiências no Daime e Candomblé, no
caderno coletivo do Projeto Corpo Sincrético).
Percebo as energias aqui, uma confluência de
energias muitas vezes opostas que coabitam no mesmo espaço, o que é muito
difícil, Ewá partilhando com o Egum [ancestral] não é uma coisa simples, são
energias muito diferentes (Nilson Saldanha, Babalorixá, partilhando a
performance Corpo Trai, onde despontaram elementos do catolicismo popular,
paganismo, candomblé, Seicho-No-Ie).
As falas de alguns participantes –
diretos e indiretos do projeto – dão o tom dos tratamentos realizados: a) não
há uma percepção apenas, há múltiplas percepções da performance; b) a
geograficidade estabelecida convida os envolvidos a partilharem suas
experiências com o grupo, sua religiosidade mais íntima e, ao mesmo tempo, mais
cotidiana, é comunicada; c) há diversas camadas de entendimento e compreensão,
sem um controle que tente ordená-las hierarquicamente; d) não é possível
produzir uma representação efetiva, um mapeamento no sentido de “colocar tudo
em ordem sob a tutelagem de uma narrativa predominante do período” (MASSEY,
2008, p. 123).
Essa necessidade de ordenação narrativa
de um coletivo solapa a própria realidade da vivência espacial dos indivíduos,
acaba por negar a possibilidade da multiplicidade de conexões não
hierarquizadas (MASSEY, 2008). Ainda que a autora não discuta a questão da
irrepresentação espacial a partir do tema aqui exposto, sua discussão nos ajuda
a compreender o que propomos como possível sincretismo religioso, realizado na
coexistência dos múltiplos, ao que Massey (2008) definiu como “coetaneidade”.
Além do mapeamento e irrepresentação,
outro processo que destacamos com importantes implicações educativas da
religiosidade é a instituição de um “lugar”, no sentido de estabilidade,
afetividade e familiaridade constituída (TUAN, 1983), o lugar é um ponto no
espaço total de onde nos situamos e nos reconhecemos, este processo de
reconhecimento é produzido na experiência enquanto continuum “que abrange as diferentes maneiras através das quais uma
pessoa conhece e constrói a realidade” (TUAN, 1983, p. 9). A experiência então
é constituída de sensações, percepções e concepções.
Me senti a vontade aqui para vivenciar estas
coisas, porque gosto de algo que me desperte e me chame a atenção (Hugo
Cordeiro, partilhando a performance o Corpo-Comunga);
Não me surpreendi porque participo de
rituais, vivo isso como algo natural (Denis Bezerra, partilhando a performance
o Corpo Comunga).
Estou completamente a vontade realizando a
performance, quero ver até onde pode ir isto! (Mailson Soares, integrante da
instalação, em reunião do projeto);
Esse projeto me deixa dúvidas, porque penso
que é e não é o que penso, quando tenho certeza que é por um caminho, aparece o
inesperado (Maurício Franco, integrante da instalação, partilhando a
performance o Corpo Foge);
Estou bem, aqui, com vocês, não preciso falar
nada, só quero estar (Cláudio Dídima, partilhando a performance o Corpo-Comunga,
quando a plateia abandonou a arquibancada onde ocorreu a instalação
performativa e entrou na mesma, sentando, deitando, auxiliando nos movimentos,
se alimentando).
Estou cuidando de vocês durante a
performance, que é tanto o meu papel de mulher quanto o meu papel no terreiro,
o cuidado é o meu motivador nesse tratamento (Rosilene Cordeiro, partilhando a
performance o Corpo-Trai).
As falas trazem impressões muito
fortes sobre a instituição de um lugar enquanto espaço de relações afetivas e
sagradas, fundamental para a produção da coetaneidade e diálogo
inter-religioso. Os indivíduos nesse processo tornam-se um coletivo, sem que
isso acarrete uma massificação ou anulação das individualidades ou mesmo das
confusões e conflitualidades, como também as falas explicitam.
Esta conflitualidade contradiz em
parte o conceito de lugar a partir de Y-Fu Tuan (1983, p. 198) “[...] um mundo
de significado organizado. É essencialmente um conceito estático. Se víssemos o
mundo como um processo, em constante mudança, não seríamos capazes de
desenvolver nenhum sentido de lugar”. Acreditamos que tanto a estabilidade
quanto a mudança, tanto o que é estático quanto o que é movimento compõe o
lugar, que não é fruto de uma concordância do coletivo, comporta conflitos, mas
conflitos estes construídos a partir de uma posição compreensiva e dialógica.
Cabe ainda ressaltar a fala de
Rosilene Cordeiro no que se refere ao “cuidado”, que não podemos conceber
apenas no sentido idealizado, mas, sobretudo, em sentido existencial – o
cuidado como uma abertura para o mundo e para o outro, na medida em que nos
reconhecemos como ser no mundo,
assumimos a atitude de dar conta de nossos atos e, ainda que isso leve a
angústia diante da pressão da existência, também possibilita um retorno
consciente a nós mesmos e a nossa voz, uma autenticidade que não se pretende
verdade universal, mas um viver para si e para o outro e, de modo mais amplo,
para o mundo, numa atitude libertadora que atravessa o falatório cotidiano para
instituir a conquista do universo existencial (Heidegger, 2012).
A partir do momento que tomamos para
nós a responsabilidade de nossa existência e nos direcionamos para o lugar e o
mundo, há uma alegria e uma completude fundamentais (HEIDEGGER, 2012).
Interessante que após os diversos tratamentos a sensação de completude e
entendimento do momento sagrado partilhado é evidente, tanto para os
integrantes do projeto, quanto para os que participam enquanto público-atuante.
Obviamente, nem todos constroem esta
vinculação e este cuidado no acontecer da instalação, já ocorreram casos de
algumas pessoas comprometidas com sua religiosidade específica abandonarem a
instalação quando a performance de Ewá inicia, porém, até mesmo esta postura de
não abertura é compreendida enquanto aspecto relevante do projeto. Na fala de
um dos integrantes “Eu experimento com tranquilidade o momento, mas minha irmã,
que é católica fervorosa ia fugir na hora que os elementos de candomblé se
apresentassem” (participante do tratamento Corpo-Comunga, em roda de bate-papo
posterior).
A coetaneidade não é a coexistência
dos múltiplos por conexões já dadas, as conexões devem ser construídas numa
atitude de abertura ao outro, não mais pensado como inferior, atrasado ou
estranho, mas diverso, uma trajetória que tem sua própria historicidade e que
pode dialogar com a nossa, abrir determinadas conexões pode implicar em fechar
outras (MASSEY, 2008).
As implicações educativas e políticas
da concepção e proposta metodológica aqui encaminhada (mas não finalizada) são
evidentes. O espaço que emerge desta proposta-pesquisa se levanta contra um
tipo de “imaginação espacial” que produzimos onde o lugar é apenas uma superfície
na qual os outros, a partir de nossa concepção, esvaziados de sentido, tem uma
religiosidade menos verdadeira, antiquada ou pavorosa; nós, carregando a
história e nossas experiências “atravessamos” os outros que estão na superfície
de um lugar qualquer.
Massey (2008, pp. 21-22) relata o
encontro de Cortez, conquistador espanhol, com os astecas na cidade de
Tenochtitlán, onde o conquistador em sua trajetória densa de significado, de
sacralidade, de história, atravessa o espaço – do seu ponto de vista – para
tomar a cidade nativa, como se os astecas estivessem paralisados a sua espera,
sem história e sem trajetórias próprias.
Tal espaço torna mais difícil ver, em nossa
imaginação, as histórias que os astecas também estavam vivendo e produzindo. O
que poderia significar reorientar essa imaginação, questionar esse hábito de
pensar o espaço como uma superfície? Se, em vez disso, concebêssemos um
encontro de histórias, o que aconteceria às nossas imaginações implícitas de
tempo e espaço? (MASSEY, 2008, p. 23).
É justamente o exercício do encontro e do cuidado com a história religiosa dos outros e com os outros que
queremos levantar como alternativa para se pensar uma educação religiosa na
cotidianidade, conceber o encontro através da instalação performativa é um
caminho de abertura para essa possibilidade de existência que entende o corpo e
o ser em unidade com o espaço construído na relação com o diverso, o múltiplo e
o sincrético. Não há respostas prontas a esta desafio, mas a pesquisa em
processo e a atitude desencadeada trazem elementos importantes para pôr em debate
nossas imaginações religiosas espaciais.
Referências
BERQUE, A.
Paisagem-Marca, Paisagem-Matriz: Elementos da Problemática para uma Geografia
Cultural. In: ROSENDAHL, Z. & CORRÊA, R. L. (Orgs.). Paisagem, Tempo e Cultura. Rio
de Janeiro: EdUERJ, 1999.
CORDEIRO, R. Corpo
Sincrético: “A partir das 8”
INstalação PERFORMativa na composição de Ewá, a orixá da síntese. Disponível
em: http://rosileneporsimesma.blogspot.com.br/2013/05/corpo-sincretico-partir-das-8.html,
acesso em 02.08.2013.
CLAVAL, P. A Geografia Cultural. 3 ed. Florianópolis: Ed. UFSC,
2007.
DARDEL, E. O Homem e A Terra, Natureza da
Realidade Geográfica. São Paulo: Perspectiva, 2011.
ELIADE, M. O Sagrado e o Profano – A Essência das
Religiões. São Paulo: Martin
Fontes, 2001.
GEERTZ, C. Nova Luz sobre a Antropologia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
LIGIÉRO, Z. Corpo a Corpo. Estudo das performances
brasileiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2011.
HEIDEGGER, M.
Ser e Tempo [Edição Bilíngue]. São
Paulo: Unicamp e Ed.Vozes (RJ), 2012.
LYNCH, K. A Imagem da Cidade. São Paulo: Martin
Fontes, 1999.
MASSEY, D. Pelo Espaço. Uma nova política da
espacialidade. Rio de Janeiro: Bertrand, 2008.
MERLEAU-PONTY,
M. Fenomenologia da Percepção. São
Paulo: Martin Fontes, 1999.
NOGUEIRA, A.
R. B. Uma interpretação fenomenológica da geografia. In: GALENO, A.; SILVA, A.
A. D. da (Orgs.). Geografia ciência dos complexus: ensaios
transdisciplinares. Porto Alegre: Sulina, 2004.
PETCHENIK, B. B. Cognição e cartografia. Geocartografia.
n.6, São Paulo: USP, 1995.
SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. Ensaio de Ontologia
Fenomenológica. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2003.
TUAN, Y. Espaço e Lugar. São Paulo: Difel, 1993.
[1] Mestre em Geografia pela
UFPA, Professor da Universidade da Amazônia, integrante do Grupo de Pesquisa
Sociedade Cultura e Identidade, atuando na linha de pesquisa Geograficidades
Amazônicas: espaço, identidade e política, email: wallacepantoja@unama.br.
[2] Orixá do Candomblé ligada
à água, tendo uma corporeidade feminina e misteriosa, representada por uma
serpente e tendo como elemento a Lua.
[3] A página na rede social
facebook é https://www.facebook.com/groups/129037877263045/?fre
f=ts,
embora seja um grupo fechado, novos integrantes vão se agregando a cada
tratamento; o Blog em questão é http://pesquisocorpocenico.blogspot.com.br/,
este de livre acesso e contendo detalhes do processo.
[1]
Mestre em Geografia Cultural com enfoque em Religiosidade. Especialista em .
Coordenador Professor pesquisador de Geografia na Universidade da Amazônia e
SEDUC- PA. ‘Corpo rede’ integrante do Coletivo Projeto Corpo Sincrético com
INstalação PERFORMativa Corpo Sincrético ‘A partir das 8’ com Ewá em sucessivos
estados de presentações em Belém/PA no ano de 2013.
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