Diálogos com o anjo- O corpo trai

Por  Rafael Couto.  O arauto  integrante do Grupo Corpo Sincrético

Corpo Sincrético – O Corpo Trai

No corpo está nosso registro histórico, dessa e de outras vidas. Nele está gravado o mimetismo da movimentação, fala e gestos de nossos pais, grupos sociais e modelos que buscamos imitar; nossas relações com pessoas, lugares, animais, culturas; tensões, suavidades, traumas e conquistas ao longo da nossa existência; potencialidades, dificuldades, salubridades e enfermidades decorrentes de nossas escolhas. O CORPO É NOSSO MAPA, guia nossa alma através de um intenso aprendizado, é a projeção de nosso espírito. Através do corpo posso conhecer(-me), libertar(-me), curar(-me), celebrar(-me) e, ao mesmo tempo, confundir(-me), aprisionar(-me), ferir(-me), trair(-me). Ele é nossa manifestação mais honesta, faz brilhar os olhos, acelerar o coração, doer a cabeça, construir tiques, concentrar tensões, curvar a coluna, ouriçar a pele, gerar doenças, lubrificar o sexo. Gastamos uma quantidade imensa de energia buscando construir uma imagem de felicidade, força e bem estar, mas o corpo nos trai e nos expressa, nos revelando mesmo contra nossa vontade— nos trai por que é honesto.
A religião é a Divina Comédia humana. Adquirimos um sábio conhecimento e, ao buscar construir uma sólida base de costumes erigida sobre esses ensinamentos, caímos em dois caminhos: o de falhar sinceramente ou falsamente dominar-se. A falha gera culpas e dores, o corpo se manifesta, cria tiques de ansiedade e reflexos de defesa. O enganoso domínio precoce gera frustração e irritabilidade, o corpo se manifesta, cria nós de tensão e reflexos de ataque. Mas seja pela religião, filosofia, ciência, convivência, trabalho e/ou arte, por vezes a alma se liberta e adquire verdadeiro progresso, pode acontecer relativamente em curto prazo, no caso de uma mudança substancial em nossa percepção de vida e resolução de questões emocionais, ou de longo, muito longo prazo — como geralmente é — após muita disciplina, recondicionamento, insistência. A questão é que quando a evolução é verdadeira, o corpo também a expressa e chegamos à congruência do que nossa mente pensa, a boca fala e o corpo revela.
O conflito se faz quando temos dois ou mais caminhos, pessoas, “verdades” e, escolher uma tem como consequência excluir a outra. Daí nasce os instintos de fuga, de esquiva, instala-se um cansaço consumidor de energias, surgem tensões e ansiedades geradas por indecisão e medo. Estagnamos. Então, para sair deste influxo, criamos coragem ou somos consumidos por nossos sentimentos e, finalmente, damos o passo em direção a um e viramos as costas a outro. Traímos. A traição a si, algo e/ou alguém é sempre em favor a uma fidelidade a si, algo e/ou alguém. Seguimos.O que nos fará rir ou chorar, evoluir ou se perder com nossa escolha está ligado a acertar ao que somos fiéis ou traidores, se a verdades ou ilusões. Mas foi justamente a descoberta da impossibilidade de nos desfazermos de raízes tão profundas — que imprimiram marcas importantes — simplesmente pelo ato de seguir fielmente e exclusivamente por outro caminho, que surge o CORPO SINCRÉTICO.
Acredito que a arte não é somente uma forma de expressarmos nosso universo interno, mas também uma forma de nos conhecer, criar ou responder questões imbuídas de potencial criadore libertador. No memento estou preso a um dilema interno. Encontrei no espiritismo uma clareza absurda, uma compreensão construída com bases sólidas, onde descobri a relação entre causas e efeitos, com uma prática que refina a frequência energética daqueles que vivenciam a doutrina de todo o coração e sem hipocrisia (dentro do que é possível a um ser humano). Do outro lado, tenho relação profunda com a magia e ela já foi o meu foco de luz por várias vezes e me possibilitou realizações que contribuíram para o meu aprendizado e evolução. Claro que tudo é parte de minhaspercepçõese, sendo assim, os benefícios de um ou ambos podem ser mera aparência. O espiritismo apresenta um caminho mais claro, reto, harmonioso, muito longo e gradual, a luz tem que progredir extinguindo-se as sombras, se aproximando cada vez mais de uma felicidade mais plena. Já a magia é um caminho dúbio, que trabalha com a congregação dessas duas forças, luz e sombra, é um caminho mais perigoso, mas que em seu potencial luminoso, gera uma força criadora e realizadora fenomenal, incluindo também algumas “promessas” do espiritismo. Mas cada um é um caminho e possui suas próprias formas de vivência. Terminam fragilizando um ao outro, o espiritismo começa a fazer com que o animal totem que tanto me guiava e dava força não passe de uma projeção anímica que indica atraso e primitivismo, meu oráculo vira um rito de evocação de uma mente curiosa e que me absorve energias (e tudo embuído de bastante sentido). A magia me faz ver o espiritismo como limitante e me afasta dessa religião que tanto me traz clareza e paz. Para piorar crio o Teatro das Sombras, — dentro do caminho da magia — brinco e comungo com entidades zombeteiras, sofrendo as consequências dolorosas desse convívio, mas também propiciando muitos momentos de prazer e aprendizado. Comecei a pensar que ir ao centro espírita irritava as entidades do Perifeéricos e atrapalhava o processo, como se, para minha evolução espiritual, devesse me desfazer da minha trupe, ou para o sucesso dela, me desfazer do espiritismo — trair um para ser fiel ao outro, a problemática de servir a dois deuses. Ao mesmo tempo, pensava que, ao me manter longe do espiritismo, ficava afastado de uma espiritualidade que muito me fortalece e ficava mais vulnerável a essas entidades, mas também tirava a firmeza da essencial vivência da magia que o processo naturalmente pede. Encruzilhadas. Vi no CORPO SINCRÉTICO um possível ponto de luz para resolver essa questão, trilho esse processo com uma fé muito grande de que será uma vivência de comunhão artística e evolução espiritual, e sinto como se este potencial sintetizador, transformador e libertador fosse canalizado a partir de nosso trabalho e emanado (percebido ou não) até o público.
Mídias, mapas, oráculos, batuques, visualidades e textos à parte, esse corpo, que manifestará o sincretismo, o vencer do medo e resolução (ou aprisionamento) dos (ou pelos) dilemas será plasmado a partir da Rosi. Faço aqui o papel de anjo, no sentido de auxiliar sua condução e dar força para a realização, mas também venho como um mortal que vê nessa atriz a sacerdotisa que recebe esta força Ewá e me mostrará a luz e sombra que necessito e creio muitos necessitarem. Ela será esse corpo, que é a manifestação final da verdade ou ilusão de nosso processo, o corpo que revela a essência do que ela mesma propôs. Faço aqui alguns encaminhamentos e provocações:
·         Como um leitor de símbolos, vejo que o elemento água rege nosso caminho, devendo aparecer manifestado nas diversas linguagens.
·         Perceba seu corpo. Note onde seu ritmo acelera ou fica hesitante; onde o corpo fica leve ou pesado; a energia suave e densa, prazerosa ou angustiante; como seu corpo fica quando está luz e quando está sombra; onde se concentram suas tensões, qual a parte do seu corpo que mais gosta, a que mais se envergonha; seus tiques e cacoetes.
·         Plasme no corpo um estado, ritmo e movimento que expresse as diferentes vivências de estados sentidos em diferentes religiões, principalmente as que foram ou são mais antagônicas para você. Descubra um novo corpo a partir da união das matrizes pessoalmente mais díspares, as que mais geraram ou geram conflito.
·         Perceba o que você não está traindo em função desse processo e traia.
·         Meu trabalho, entre outras nuances, trouxe o momento de expor as minhas fragilidades. Ewá não usa chorão, mas para ter a força de um cavalo de Ewá, é preciso esvaziar-se primeiro. Em que momento Rosilene mostra suas fragilidades, seu real conflito, aquele que mais essencialmente te levou a realizar esse processo e como resolveu ou ainda está presa a ele?
·         O Corpo é nosso mapa, essa instalação é o interior de um corpo, dividido entre os olhos são os vídeos, que captam e projetam imagens do passado, presente e futuro; as peles são os figurinos, simbolizando as diversas trocas da serpente, suas múltiplas transformações, mudanças dolorosas; ossos serão as estruturas que sustentarão a instalação, prevalecendo o branco, cor síntese que facilita o destaque das cores que pintarão essa tela; o sangue, o símbolo água que irriga e aparece nas diversas linguagens; o coração e pulmões são o batuque e a música, que regerá o ritmo das diferentes performances, gerando assim uma pulsação uníssona na diversidade de linguagens; a garganta e a boca são representadas pelo oráculo e manifestadas pela palavra escrita e falada; a dramaturgia e o texto são definidos pela mente que organiza e compreende; e, por fim, os músculos são o corpo que joga na realidade espaço/tempo da performance,  que trai e revela a atriz, começo e fim desse ciclo, dessa serpente;
·         Brincar com a dualidade rato e serpente, Rosi e Ewá.

MINHA PROPOSTA DE PERFORMANCE DENTRO DO CORPO SINCRÉTICO

Serei um oráculo, teu anjo da guarda e teu obsessor. Serei o cavalo dessas outras entidades que revelam, protegem e descaminham. Através de mim sairão palavras e ações que norteiam, mas também um caos que desviará cursos de ações. Serei teu reflexo e também o dos espectadores, fazendo leituras de ti e deles, expressando sob a forma de signos as impressões que sinto. Serei tua sorte e azar, O DESTINO/RODA DA FORTUNA, o que te dará força e revelará fragilidades. Estarei de corpo presente na performance, como um ser dentro de um aquário, isolado em um canto. Minha intervenção será compor visualmente esse corpo da performance e tendo a possibilidade de interferir com textos falados, reações, interações e desenhos que expressem o que está ocorrendo no momento da performance (em cinco folhas de papel, formando um jogo de cartas. Minha pele será algo entre um baba orixá jogador de búzios e entidade do mar. Assim como vejo a Rosi mortal, passando por todo um caminho para chegar a Ewá, penso desse oráculo já começar como uma entidade fantástica que vai se tornando Rafael, até se integrar ao público.

Proposta de textos
Texto – A barriga da serpente
Sou esse rato, ator engolido por mim mesmo, essa serpente entidade dentro e fora de mim.Cumpra tua função, atriz, foi tu mesma que aceitou esse fardo. Ser um, ser par, ser ente. Seja, já, a ponte para o horizonte, a ponte para o horizonte. Ewá não usa chorão. Lace seu destino, em breve será tarde demais para lástimas. Muitas são as lágrimas durante a travessia — disse Ela. Força! Longo é caminho. O ritual é o mesmo. Muda a paisagem, o olhar. Espiral ascendente, espiral ritual, ascensão espiritual. O corpo fica, mas deixa marcas e tudo começa de novo, sob uma nova forma.Nos encontraremos muitas vezes, pecadora, sempre na hora certa.

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